por Augusto Soares da Carvalhalva
O Talaio era um homem danado, esperto e desenrascado, sobretudo naquela época, cerca de 1940, quando tudo piava fininho e a ninguém era dada muita rédea solta, … até porque ali era tudo muito regrado e religioso, até havia padres na família.
Para além dessas, o Talaio tinha outras virtudes, uma das quais era ser um veloz corredor de atletismo.
A Quitas do Conde e a Aurora do Tapado, raparigas novas e em idade de namoricos, sempre cheias de cochichos para partilharem, costumavam ambas ir juntas à retrete do pátio, que do lado Sul da casa estava construída na perpendicular dos currais do gado.
Era uma bonita retrete da época, uma construção espaçosa, duns dois de fundo por três metros de frente, toda em pedra, de cantaria à vista nos pilares e nas padieiras. Era aí sempre o local mais seguro e indicado para as duas criadas atualizarem entre si as novidades do dia.
Tal dueto de segredices, a tempo inteiro naquela idade, logo foi detectado pelo meu avô e pelo pessoal da casa.
Posto a par da coisa, o maroto do Talaio de imediato avançou com uma das suas imparáveis ideias, da qual, como sempre, ninguém mais o conseguiu demover:
– Pronto, então vais, Manel, mas chegado lá perto apenas dás um berro muito alto para as assustar, sem te aproximares demasiado.
– Sem problema, Sr. Augusto Borges, confie, que cá o Talaio sabe o que faz.
Acomodado o gado, já a noite tudo tinha pintado de escuro, a Quitas e a Aurora escaparam-se sorrateiras para a Retrete, cada uma, saias acima, alapada no seu buraco.
Piscando o olho aos demais, ligeiro que nem um rato, o Talaio saiu pela porta do lado norte, do lado oposto ao Pátio.
Passando pelo Armazém do vinho, “almazém” como então diziam, levou consigo uma vassoura de giestas que ali encontrou, contornou a Horta e o Laranjal e lá seguiu para o objetivo que tinha em mente, … coisa boa não seria, todos logo tal temeram.
Sorrateiro, aproximou-se do janelo traseiro de limpeza, que por baixo do balcão da dita retrete havia. Espreitou para cima e logo viu duas luas-cheias, tão redondas e brilhantes como o luar de Agosto que lá fora iluminava o mundo.
Sem hesitações, o maroto, apontou a vassoura ao alto, em direcção àqueles círculos de cêra que sobressaiam luzentes do escuro tecto de tabuame antigo que a passagem do tempo tornara já da cor das panelas de três pernas da lareira da cozinha.
Logo, rapidíssimo como sempre, o Talaio vassourou o mais afastado daquelas alvos balões de luz, e, numa fracção de segundo, o outro, com tal destreza e rapidez que os dois gritos parecerem um só.
Em poucos segundos — num record de velocidade inacreditável para os que da cozinha, no primeiro andar da casa, tentavam adivinhar o plano do Talaio — já este retornava lampeiro, ainda o uníssono berro da Quitas e da Aurora ecoava da porta da retrete, donde ambas se atropelavam na sofreguidão da saída.
Entradas na cozinha, sem ar, mais vermelhas que o fogo que na lareira crepitava, ambas passaram os olhos a toda a volta, a contar e a conferir a presença de todos, os olhos esbugalhados de espanto e de medo.
– Que andamento é esse, raparigas?
– Ai, Sr. Augusto, … vossemecê nem vai acreditar, … alguém nos arranhou, com sua licença, por baixo, pelo janelo da retrete – resfolegou a Aurora.
– Não, Sr. Augusto, … está cá toda a gente, não foi ninguém, o que foi …, foi o Mafarrico, o Tardo, … de certeza,… Deus nos acuda, t’arrenego Satanás – corrigiu a Quitas.
– T’arrenego Satanás! – ouviu-se a voz do Talaio, meio-dormente, o maroto, sem tirar os olhos do lume.
Augusto Soares da Carvalhalva
Esta é uma das muitas histórias do “Talaio”, Manuel Soares, quando trabalhava na Casa de Aguincheira, o pai do também famoso Domingos Soares, do lugar da Formiga, tal como o seu progenitor também ele um corredor de atletismo que ficou conhecido por todo o vale de Cambra, que em treinamento quase diário o percorria de lés-a-lés, sempre equipado com as cores do seu Futebol Clube do Porto.