As questões éticas nos cuidados de saúde

As questões éticas nos cuidados de saúde

por adão cruz

Com este título, AS QUESTÕES ÉTICAS NOS CUIDADOS DE SAÚDE, recebi, em tempos, um texto enviado pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas, solicitando a discussão do documento, a fim de que ele pudesse constituir um instrumento útil de reflexão. 

Na altura, li e reli o texto com toda a atenção. Reconheço e aprovo os valores fundamentais que constituem o seu núcleo, mas não me parece que ele tenha uma significativa repercussão na consciência de médicos e de outros agentes de saúde.

Como parte da população pertencente aos mais diversos sectores profissionais e sociais, uma boa parte de nós, médicos e outro pessoal de saúde, não tem a formação exigida para exercer uma verdadeira Ética em Saúde.

Uma grande falha no ensino da medicina, capaz de comprometer seriamente o ensino da vida.

A ética nasce e desenvolve-se dentro de cada um de nós à medida que a vamos aprendendo, apreendendo e vivenciando.

Por isso, não me parece fácil haver uma reflexão séria sobre a nobreza dos ideais médicos, de forma a poder entender-se que “O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se, por esse facto, à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do Ser Humano”.

Isto não é um mandamento do código da estrada, nem uma alínea do articulado de qualquer lei. Este Artigo 26º do Código de Deontologia Médica implica, antes de tudo, que o médico e outros profissionais de saúde tenham bem estruturado na sua natureza e na sua formação um rigoroso respeito por eles próprios, e reconheçam a sua dignidade como pedra fundamental da vida e da profissão.

De outra forma, todos os códigos são letra morta e só servem para enfeitar. Dito por outras palavras, todo o ser humano deveria ser global e estruturalmente bem formado, mas especialmente quando lhe é destinada a nobre e digna missão de lutar pela vida dos outros. 

Uma boa parte da humanidade, ao invés de humanizar as leis, infelizmente vai-as subvertendo no dia a dia, ao tecer a corda cada vez mais forte com que enforca cada vez melhor os mais fracos.

A este fenómeno podem não ser alheios os profissionais de saúde e a medicina, quer no que diz respeito à competência, quer no que diz respeito ao empenhamento, à verdade e à honestidade dos meios e processos inerentes a toda a sua vida clínica.

Considero e sempre considerei a Ciência o verdadeiro caminho do conhecimento. Mas a ciência pode ser e é muitas vezes uma eufemística boa fada da humanidade, criada para apoio dos fracos, passando rapidamente a suporte dos poderosos.

Com todo o potencial que a envolve, é fácil atraiçoar os projectos humanitários e o seu histórico bom-senso, quando em vez de construtiva se torna factor degradante da vida humana.

Mas o perigo não está na ciência. Está na perversão da ciência perante os apetites dos poderes. E também pode estar, infelizmente, na perversão da sua filha mais dilecta, mais séria e mais virgem, a Ciência Médica.

De nada servem palavras e comportamentos formais e enformados, inertes, nascidos da adaptação e do conformismo, despidos da inquietação, do revolver da inteligência, do poder do pensamento e do questionamento da consciência.

Na minha maneira de ver, ser médico obriga a um especial dimensionamento da existência à escala da vida, da vida à escala da saúde, da saúde à escala da Justiça, da Justiça à escala do mundo.

A visão universal da vida aponta para o núcleo activo das interacções multifactoriais da existência, o qual exige a presença de uma política humana que torne possível uma ciência humana, base indispensável do progresso e da justiça.

Podem chamar utopia a tudo isto. Mas o remexer do que em nós existe de sério, o soprar do pó que cobre as nossas consciências e o desenraizar das nossas hipocrisias mostram-nos que, sem utopias, todo o ser humano se torna mais permeável à desumanização e à irracionalidade.

E todos os que pensam e lutam sabem que “a utopia é a injúria ordinária que os medíocres atiram a todos os ideais”.