Bocage em Queluz

Bocage em Queluz
Manuel de Almeida

Conto Serrano(1).

1. A recepção à Rainha.

Naquele dia o pequeno burgo de Queluz, às portas de Lisboa, estava em festa. A notícia tinha circulado: – O Palácio e os seus jardins estavam a ser preparados para receber a rainha e demais convidados.                     

Era primavera e estava tudo em flor. Os príncipes brincavam mesmo junto ao rio Jamor que,naquele tempo, corria límpido e suave lá mais abaixo. Pudera, todas as águas dos ribeiros e fontes de Belas, Carenque, Porcalhota – actual Amadora – e Massamá haviam sido para lá desviadas. Preocupadas mesmo só as aias, não fosse alguma coisa acontecer a tão reais cabeças.

 Pelo meio-dia soaram as trombetas. A rainha e o seu vasto séquito chegavam da Ajuda, através da estrada recentemente mandada reabrir pelo zeloso Intendente Pina Manique. 

Toda a nobreza estava presente, bem como os embaixadores dos países com quem Portugal mantinha relações diplomáticas, com destaque para os de França e Inglaterra e respectivas esposas. 

2. A  preparação da refeição.

 No amplo  salão, as mesas para o lauto repasto estavam repletas de pratos de fina faiança e baixelas em prata. Ainda chegava algum ouro do Brasil, assim parecia.

 A ementa incluía muita caça, sobretudo faisões e perdizes. Algumas destas aves haviam sido caçadas, mais acima, nos vastos terrenos que iam de Massamá até à Agualva, hoje chamada de Cacém. 

3. Os poetas convidados.

Para além da nobreza e confessor da rainha, lá estavam todos os poetas da Nova Arcádia. Mesmo contra a vontade de alguns, ninguém faltou. Os convites tinham a assinatura de Pina Manique. Festa era festa e um documento rubricado pelo Intendente era uma ordem.

Sabida a rivalidade entre BOCAGE e o ex-frade, Agostinho de Macedo, também presente, o povoléu aplaudiu a chegada dos poetas ao grande terreiro fronteiriço ao Palácio. 

Sentados os convivas logo a rainha apareceu. Irradiava alegria. Era o seu aniversário. Todos se levantaram e fizeram a respectiva vénia.

Contudo e para irritação de Pina Manique e inveja de alguns dos Arcades,  desta vez,  não seguiu o protocolo. Apesar de ter à sua direita, como competia, o seu consorte, chamou para a sua mesa o poeta BOCAGE. Sentou-o à sua esquerda de modo a poderem conversar e saber aquilo que Pina Manique não lhe dizia. 

Dispostos em fila e primorosamente vestidos, os criados começaram a servir:  – Primeiro a real mesa e depois os restantes. Bocage, entre os primeiros.

Os pratos saiam cheios da ampla cozinha e regressavam vazios, trazidos pelos atarefados serviçais. Ninguém pensava em dietas.

4. O heroísmo de Bocage. 

Talvez por ter ingerido excesso de amidos, parece que mesmo já algum puré de batata – isto não se apurou bem -, a rainha sentiu o intestino cheio e deu um real traque, que é como quem diz em linguagem plebeia e serrana, aonde colhemos a informação, um “peido“.

Todos ouviram, inclusive o Intendente que até corou, diz-se. Pior foi o cheiro.Dos bolsos dos convivas logo saíram perfumados lenços de seda. As damas abanavam, sem parar,  os seus vistosos leques. Queluz toldou-se, mas aguentou-se. 

Embaraçada e sem saber como resolver a situação, a soberana recorre a Bocage, dizendo:

– “Safa-me desta encrenca que eu encho-te de honrarias. Diz que foste tu que deste o peido”. 

– O poeta não se fez rogado: – Levantou-se e,  em voz alta, exclamou:

“O peido que
S. Majestade deu,
Não foi dela,
Mas meu”. 

Escutou-se, então, uma gargalhada geral e o “incidente” foi sanado; tendo, entretanto, S. Alteza Real regressado aos aposentos e aos cuidados das aias. 

Relativamente a Bocage, e tanto quanto se indagou, veio para os jardins recitar versos em despique com alguns dos Arcades; sendo abundantemente aplaudido pelos presentes, sobretudo pelo embaixador da França.

O dinheiro recebido pelo nobre feito é que foi pouco mais do que nenhum, já que o poeta faleceu, anos mais tarde, em absoluta miséria.

ANOTAÇÕES

(1) – Este pequeno conto é baseado em recolhas verbais obtidas, na década de 80 do século XX, numa pequena aldeia – Viadal – situada nas faldas da Serra da Freita.

Foi inicialmente publicado na Voz de Cambra de 10 de Abril de 2007, com o título: – “O BANQUETE, A RAINHA E O PEIDO”.

Com a mesma origem publicamos aí mais três textos:  
a) Breve biografia do poeta. (in, VC  de 25 de Fevereiro de 2007)
b) A Morte, em Setúbal, do Cavalo Branco do Rei. (in, VC  de 10 de Março de 2007)
c) Quadra a uma Bonita Menina. A acção decorre em Alfama, Lisboa. (in, VC  de 25 de Abril de 2007)

NOTAS

a) – Estes textos já estão também disponíveis, neste Blog.
b) – Temos, em preparação, mais alguns pequenos trabalhos, relacionados com Bocage, a saber:
1) – Bocage e o seu Moleiro;
2) – Bocage e o Lisboeta Espertalhão.
3) – Bocage no Brasil.

Manuel de Almeida