O Ciclo do Linho

Linho

A festa do linho

Depois de 1920, a agricultura ocupava mais de 80% da população, e os trabalhos agrícolas, como a sacha do milho, a ceifa, as desfolhadas, conforme já referi, mas também as arrancadas, espadeladas e outros trabalhos, eram acompanhados de festas e alegria.

No entanto, o trabalho mais alegre do campo era a extracção do linho da terra – a arrancada.

No dia da arrancada, de manhã bem cedo, as mulheres do lugar e vizinhas juntavam-se na grande cozinha da casa de lavoura para tomarem café com migas com que entretinham o estômago até à merenda das dez horas – a bacalhoada.

Os homens, chamados para enfeixar e ripar o linho, preferiam um gole de café e um cálice de aguardente, de preferência acompanhado com um figo de ceira, para “matar o bicho”.

Antes da arrancada, depois das arrancadeiras e alguns homens fazerem uma cantada, a brincadeira seguinte seria o tombar do linho, aproveitada pelos rapazes solteiros para, num abraço bem apertado às moçoilas afogueadas, rolarem até ao fundo do campo, num misto de ingenuidade e malícia, aproveitando até para darem um beijo furtivo e apetecido à moça, que nesse tempo não havia as liberdades de agora e um beijo assim tinha realmente outro sabor.

Mas nem só os jovens solteiros aproveitavam esse momento. Também alguns homens casados, mais atiradiços, gostavam de experimentar a fruta quase madura… [1]

O linho é uma fibra têxtil de origem vegetal e é conhecido desde remota antiguidade. É uma planta anual, originária do Egipto. O linho é um material de primeira classe na confecção de toalhas de mesa, guardanapos e lençóis.

Em Portugal cultiva-se e fabrica-se o linho, especialmente no Minho, Beiras e Trás-os-Montes.

Ao linho cultivado maioritariamente na zona de Vale de Cambra chama-se linho galego.

As sementes (linhaça) são guardadas de um ano para o outro, após a ripagem.

Depois da terra limpa e preparada, lavra-se a terra e grada-se com a grade dos bois.

No início da Primavera, começa por ser semeado, a lanço de mão.

A boa qualidade da fibra depende do seu tempo de crescimento. As ervas daninhas são eliminadas com o ancinho que arranha a terra e a rega é efectuada em abundância e regularmente.

A flor do linho é azul e nela se cria a baganha, dentro da qual está a linhaça que será usada na próxima sementeira.

Depois de amadurecer, quando a haste já está amarelada, em fins de Junho ou Julho, as mulheres procedem à arrancada ou colheita.

Costumavam fazer cantadas, anunciando o início da faina, como, por exemplo, em Vila Cova de Perrinho:

Serandeirinhos de ontem à noite
Dai um saltinho à eira
Vinde buscar as maçãs
Qu’eu vos trago na algibeira
Ó larai, larai e ó larai, larai,
Ó larai, larai e ó larai, larai.

O linho sai da terra às mãos-cheias e, em molhos, é transportado à cabeça pelas raparigas para a eira, para ser ripado pelos homens que com o “ripo” extraem a semente (os bagalhões com a linhaça).

O ripanço, reservado essencialmente aos homens, dois de cada lado do carro de bois, consiste em separar a baganha dos caules.

Fazem incidir os molhos nos dentes do ripanço com batidelas fortes na vertical e puxando-os depois para si num movimento rápido e horizontal.

A baganha que se vai amontoando por baixo do ripanço é retirada com um ancinho para cestos.

Posteriormente é espalhada na eira, onde mexida várias vezes ao dia, ficará até abrir e deixar sair a linhaça.

Antigamente, no campo era içada uma bandeira e outra assente no “ripo”, num carro de bois, na eira. [2]

Essas bandeiras eram improvisadas com as colchas melhores da casa agrícola.

Durante a faina, os homens gritavam:

Viva a nossa e morra a vossa!

As mulheres que estavam no campo respondiam com idênticos gritos e procuravam roubar a bandeira uns aos outros.

Depois de recolhidas as sementes, para se obter as fibras, faz-se o curtimento.

Assim, depois de encruzado e amarrado em molhos maiores, estes vão sofrer o curtimento – imersão em água durante aproximadamente oito dias (doze ou treze dias no caso do linho galego) – nos chamados “lagos”, compartimentos naturais ou feitos junto ao leito do rio.

Normalmente os “lagos” eram maninhos e, portanto, podiam ser usados por toda a gente que precisasse, em partilha, determinada pela chegada dos molhos de linho.

Por ocasião da colocação do linho a curtir, antigamente havia a festa mais importante, acompanhada por um grupo normalmente constituído por viola braguesa, harmónica (concertina, mais tarde acordeão); por vezes, juntamente com o grupo musical apareciam cantadores profissionais que cantavam ao desafio.

Havia ceia melhorada (com a morte de alguns galos e o melhor vinho da adega). Dançava-se, também, até alta madrugada.

Casa do engenho do linho – Vila Cova de Perrinho

Os trabalhos de arrancar, ripar e alagar o linho são tarefas executadas no mesmo dia.

O linho era depois retirado, lavado e estendido no mato a secar, durante mais ou menos quinze dias.

Depois de seco, o linho é levado ao “engenho” [1] e vai ser maçado.

maçagem serve para separar a parte lenhosa das fibras têxteis, as matérias mais importantes para a tecelagem: os tomentos, a estopa e o linho.

Maçadeiras, maçadeiras do meu linho
Maçai o meu linho bem.
Não olheis para a Portela
Que a merenda logo vem.

De seguida, posto em pequenos molhos mais ou menos iguais, isto é, com o mesmo peso e volume, é estriado [2] e espadelado.

Esta operação consiste em o linho ser batido com uma espadela de madeira no bordo do espadeladouro em forma de cortiço, tendo por fim eliminar as palhas fragmentadas deixadas pela maçagem e extrair os tomentos.

Segue-se a cardação, em que o linho já triturado é cardado por meio de pentes de dentes grossos – os cardos – para eliminar os restos dos talos deixados pela espadelada.

Passa depois pelos sedeiros – pentes mais finos de madeira.

A assedagem, feita no sedeiro, separa as fibras longas, os tomentos, das mais curtas e grossas, a estopa.

O material grosseiro é constituído pela estopa e pelas sementes (linhaça). [3]

Obtidas as estrigas, estas põem-se nas rocas para serem fiadas, dando origem à maçaroca, fio que ficou enrolado em volta do fuso.

Portanto, para transformar o linho em fio (fiação) utiliza-se a roca e o fuso.

As maçarocas são então passadas para o sarilho e transformadas em meadas.

Nesta fase, as meadas passam por um duplo processo de branqueamento que se inicia por uma cozedura numa panela grande de ferro com água e cinza, durante três horas, mais ou menos.

Depois de fervidas, são bem lavadas e postas a enxugar. De seguida são submetidas a uma barrela num cortiço muito grande, onde são dispostas às camadas, envolvidas em água e cinza, e cobertas com um pano sobre o qual se peneira cinza de madeira e se deita água a ferver e erva-doce.

Este trabalho repete-se durante três dias. Terminada a barrela, as meadas são retiradas do barreleiro, enfiadas numa cana, lavadas com sabão e postas a corar ao sol, havendo o cuidado de nunca as deixar secar.

Havia quem dissesse que deviam ser dispostas sempre no mesmo tendal, senão elas “aguavam”.

Esta operação repete-se mais ou menos vezes, conforme a tonalidade de branco pretendida.

No final dos processos de branqueamento e secagem, as meadas são passadas a novelos por meio do fuso e dobadoira.

Quando se dobava o linho, as mulheres cantavam:

Doba, doba, dobadoira doba
Não empeces a meada
Que o novelo é pequeno
Cabe numa mão fechada.

Cabe numa mão fechada
Cabe numa mão aberta
Vai-se um amor, vem outro.
Não há verdade tão certa.

Destes novelos, colocados no urdidor, saem os fios que, passando pela espadilha, preparam a urdidura para a teia que, posteriormente, é retirada das urdideiras e colocada no tear.

Finalmente, para se obter o tecido, a tecedeira faz a trama no tear.

Para a tecelagem de um tecido tem de haver duas séries de fios: uns paralelos entre si, que vão do princípio ao fim da peça (teia ou barbim), e os outros que ficam perpendiculares à teia e que constituem a trama.

No tear manual, ou tear de pisos, os fios da teia são esticados horizontalmente entre dois cilindros ou órgãos, um colocado na rectaguarda, onde estão enrolados os fios da teia, e outro na frente, onde se enrola o tecido já feito.

Os fios da teia passam nos liços das perchadas ou malhas e, quando a teia está montada no tear, esses fios ficam paralelos e à mesma distância uns dos outros.

Tear

A tecelagem é feita pelo levantar e baixar das perchadas que suportam os fios da teia; assim, para receber a trama umas perchadas levantam-se enquanto outras baixam, seguindo os fios da teia esses movimentos.

Delas resulta um afastamento ou separação dos fios das duas séries da teia que é o que se chama cala, e então nesse intervalo faz-se passar a lançadeira, na qual esta o fio que vai formar a trama, e que se desloca perpendicularmente aos fios da teia.

Os fios da teia passam depois entre os dentes de um pente fixado num batente móvel, com um movimento oscilatório em torno de um eixo, e que é accionado pela mão do tecelão.

O pente faz, depois da passagem da lançadeira, o aperto do fio de trama contra o tecido já feito; e então, de novo, pela acção dos pedais que comandam as perchadas estas mudam de posição alterando, como se disse a posição dos fios da teia, fazendo-se a passagem da lançadeira em sentido contrário ao da passagem anterior.

O pente faz de novo o aperto e as operações repetem-se sucessivamente. O tecido passa depois pela mesa ou peito de fronte da qual está o tecelão e vai-se enrolando no cilindro da frente do tear, por um avanço comandado manualmente pelo tecelão… [3]

Conforme os fios são mais ou menos grossos, este tecido origina panos de texturas e qualidades diferentes, e para usos diversos.

Assim, os tomentos são usados na confecção de peças, como sacos e panos, ligadas às actividades agrícolas, e em certas peças de vestuário, como calças, camisas e casacos, para homem, e salas e aventais, para mulher.

A estopa, menos grossa e áspera, é usada igualmente no vestuário masculino e feminino, em especial no de trabalho, bem como em peças de uso caseiro, de cama e de mesa.

O linho [4]era guardado para as peças mais delicadas, normalmente utilizadas em ocasiões especiais.

Coitada da tecedeira
Que tem um inferno em vida..
Pau por baixo, pau por riba,
Pau nos pės, pau na bariga.

Fui falar à tecedeira
Pelo buraco do pano
Ela estava ruc-truc
Não me deu desengano

Também mo pudera dar
Estava ruc-truc agarrada ao tear
Coitada da tecedeira
Que tem um inferno em vida..
Pau por baixo, pau por riba,
Pau nos pés, pau na barriga.

Tecedeira
  1. A Voz de Cambra, Ano XX, n. 469, de 1 de Outubro de 1990
  2. A Voz de Cambra, Ano XIV, n.334, de 1 de Janeiro de 1985
  3. vide Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

Notas de rodapé

↑1O “engenho” é uma roda gigante movida pela água do rio, que tira as arestas do linho, geralmente durante a noite. Em substituição do engenho faz-se a trituração, que consiste em bater o linho com um maço de madeira.
↑2Ripado à mão. Nesta operação, por vezes, o linho era passado pelos fueiros dos carros de bois e limpo das demais arestas.
↑3Parte dessa linhaça era guardada para a sementeira seguinte e, em caso de necessidade, para fazer cataplasmas caseiras quentes, usadas na cura de abcessos, inflamações bronco pulmonares e gastroenterites agudas. Outra parte era vendida na feira dos 9 e 23 ou ao ti Zé de Ossela, almocreve que periodicamente vinha a Vale de Cambra… E essa linhaça teria um fim talvez diverso e mais industrial, no fabrico de tintas e medicamentos ou na preparação de infusões bebidas como refresco.
↑4O linho era semeado uma vez por ano. Era medido em varas. Cada arroba de pasta de linho, a sair do engenho, dava mais ou menos 10 varas de linho. Cada vara tinha aproximadamente 1,10 metros com a largura de 90 centímetros