Origem Etimológica de CAMBRA
por Maurício Antonino Fernandes **
A verdadeira origem de algumas das nossas vilas rurais, muitas das quais são hoje grandes centros urbanos, prende-se com tão remotas situações históricas ou pré-históricas, cuja inteireza de conhecimento se perde na bruma dos tempos e, só muito a custo, se lhes topa o rasto.
Há mesmo casos que, por falta de dados arqueológicos e documentais, têm aguçado a curiosidade dos investigadores e dado azo às mais inconcebíveis invenções.
Tal é o caso do estropiado topónimo CAMBRA, cuja voz se me afigura um típico alótropo ou divergente de TALÁBRIGA, como vou procurar demonstrar.
Antes, porém, de apresentar as provas, para prevenir e tirar as dúvidas a quem as possa ter ou levantar, permito-me situar bem no tempo e no espaço a existência de TALÁBRIGA, notável “opidum” da Lusitânia.
TALÁBRIGA é o nome céltico duma cidadela, que teve assento entre o Douro e o Vouga.
Os Talabrigenses. seus habitantes, da raça dos Túrdulos Velhos, também chamados Pesures, depois de terem oferecido forte resistência ao domínio romano, acabaram por cair na desgraça de serem subjugados pelo procônsul Júnio Bruto, pelos anos 136 a. C..
O Historiador romano do século I da nossa era, Plínio-o-Velho1, dá-nos da sua existência a seguinte informação: “a Durio Lusitania incipit. Turduli Veteres, Paesuri: flumen Vacca. Oppidum TALABRIGA: Oppidum et flumen Acminium: Oppidum Conimbricca.”.
Em Português:
“A Lusitânia começa no Douro. Os Túrdulos Velhos, Pesures, no rio Vouga, fortaleza de TALÁBRIGA, fortaleza e rio Emínio e fortaleza de Conímbriga.”.
E Apiano de Alexandria, outro historiador romano do século seguinte, destaca a sua tenacidade heróica nestes termos:
“Júnio Bruto chegou à cidade de Talábriga, que muitas vezes se lhe submeteu e muitas outras se sublevou, e lançou a perturbação.
Os seus habitantes chamaram-no… Ele exigiu primeiro os desertores, os prisioneiros e quantas armas tinham.
Além disso, exigiu-lhes os reféns. Em seguida, ordenou-lhes que abandonassem a cidade na companhia dos filhos e das mulheres.
Quando, porém, também isso fizeram, cercou-os com um exército e arengou-lhes ao mesmo tempo que lhes lembrava quantas vezes se tinham rebelado e quantas guerras contra ele tinham empreendido.
Assim incutiu neles o receio e a certeza de que algum castigo teriam por aquilo que tinham feito.
Depois, pôs termo às censuras. Em seguida, dos cavalos, das provisões e dos dinheiros públicos ou de quaisquer outros recursos não privados que houvessem – de tudo os despojou.
Todavia, imprevistamente concedeu-lhes que de novo habitassem a cidade. Depois de semelhante façanha, afastou-se para Roma.
Reuni estas gestas na “Guerra de Viriato”, porquanto começaram a ser cometidas nessa mesma ocasião por outros bandoleiros, em virtude do exemplo deste Viriato”
Não resisto mesmo a transcrever o que Jorge Alarcão, dando fé a este historiador romano, nos informa:
“O mesmo Apiano narra a rendição da cidade de Talábriga, entre o Douro e o Vouga, ocorrida talvez em 136 a.C…
Tendo os Talabrigenses capitulado diante do cerco que os Romanos haviam posto à cidade, Bruto exigiu a entrega dos reféns e dos soldados romanos desertores que ali se tinham acolhido: reclamou ainda que os Talabrigenses abandonassem a povoação, com mulheres e filhos, e entregassem as armas.
Quando, porém, os achou fora da cidade, contentou-se com tomar-lhes os cavalos, alguns mantimentos e bens, mas autorizou-os a voltarem aos seus lares”
Ora, “depois de semelhante façanha”, como diz Apiano, os Talabrigenses, despojados de todos os seus haveres e ameaçados de novas represálias, sentir-se-iam com ânimo para continuarem a viver como dantes e no mesmo sitio?
Disso nada nos informa aquele historiador nem qualquer outro conhecido.
Apenas sabemos que Talábriga figura ainda, no séc. II d. C., e no Itinerário de Antonino, como um ponto de passagem, sinalizado com Estudo publicado, a primeira vez, como ensaio, na Revista L-VARIA- Arquivo de Estudos Regionais, 1(1-2), Oliveira de Azeméis, 1994. págs 83-88, e ora mais enriquecido e dado à luz como tese e sem receio de contradita.
___
1 Historiógrafo, genealogista da região, autor e editor de "Carvalhos de Basto" e de diversas monografias.In Henrique Florez, España Sagrada, Madrid, 1782, tomo XIII. p. 46, e em Arquivo do Distrito de Aveiro, tomo VIII. p. 145. António de Sousa Araújo e José Cardona, História das Guerras da Ibéria de Apiano, Braga, 1993, pp. 93-94; e Arquivo do Dist. de Aveiro,LXIV. pp. 224-227. Jorge Alarcão, Portugal Romanu, colec História Mundi, Edit. Verbo, 3 ed. (1983), p. 37. Obra cit. na nota 3. p. 217 (Apêndice)
___
o marco miliário, depois de Emínio e antes de Lancóbriga, o que significa que o local, por onde passava a via militar romana que ligava Lisboa a Braga, ainda então era conhecido por aquele nome pré-romano e continuava como lugar de paragem tradicional..
Acontece, porém, que numa epígrafe do séc. I da nossa era, trazida de Vale de Cambra para o Castro de Ossela, lê-se que as cidades lusitanas de Calem, Aeminio, Lancobriga, Ossela e Vouga celebraram espectáculos, jogos e hecatombes em honra do imperador César Augusto, em comemoração da paz estabelecida entre os Lusitanos e os Romanos.
E, se é que tal epígrafe pode servir de prova, visto se ignorar o seu paradeiro, não vemos figurar nela a Talábriga do referido Itinerário de António Pio.
Como justificar então esta ausência de Talábriga e, em contrapartida, serem nomeadas cidades, como Ossela e Vouga, que não constam do referido Itinerário?
Será que ela deixou de ter vida própria, por falta de chefes?
Ou será que não se festejou nela tal acontecimento, por os seus habitantes se terem dispersado por outras terras, criando novas cidades, como Ossela, que faz lembrar a cidade de Urso, onde Viriato se entrincheirou?
É, realmente, estranho que Talábriga não figure naquela inscrição lapidar, ao lado de Lancóbriga; e que, na obras em que ela foi divulgada pela lª vez, se diga que foi trazida de Vale de Cambra para o Castro de Ossela.
Mas, depois da referida rendição dos seus habitantes, que eram na sua maioria ricos proprietários de gado e de terras fertilizadas pelos rios Antuã e Caima, tudo é possível.
Isso mesmo, conjugado com a informação do Itinerário de Antonino, sobremodo no que respeita à distância em milhas que nos fornece, tem levado a localizar a celebrada Talábriga proto-histórica em diferentes povoados castrejos da região.
Contudo, depois do que escreveu Félix Alves Pereira, bem como Manuel Mentarfa”, Arlindo Sousa¹², Miguel Castro e particularmente o arqueólogo Maia Marques¹4, não se exclui a hipótese de o seu ubi ter tido assento estratégico inicial, antes do traçado da via militar romana por ali, adentro das fortes muralhas do Castro de UI, a 3 quilómetros de Oliveira de Azeméis.
Reforçam, aliás, esta hipótese não só a existência de duas insculturas’s gravadas numa das faces de grossas lajes, implantadas junto à entrada principal daquele Castro, uma de cada lado, como que a servir de base de estátuas de guerreiros, nas quais se distingue claramente um T ibérico, mas ainda o facto de esta estação arqueológica ser defendida por 3 séries de muralhas, de 4 metros de largura”, sendo a última o próprio fosso do leito dos rios Antuā e Ul, que ali se vêm juntar, formando assim uma inexpugnável fortaleza e um perigoso precipício favorável à guerrilha, tão característica dos Lusitanos,
E, tendo em conta que os Pesures “mudavam rapidamente de lugar para lugar” e que “houve quem também trepasse às montanhas com quanto podia levar”, segundo afirma o próprio Apiano a propósito do comportamento dos povos desta região, aquando dos assédios de Júnio Bruto: como ainda terem sido encontrados, na cerca do Castro de Ossela, dois raros tesouros, um constituído por 17 braceletes ou jorcas de ouro, e outro por cerca de 150 moedas romanas do séc. IV d.C.2″, – não será lícito pensar numa fuga para o interior e, portanto, num abandono total ou parcial do primitivo assento de Talábriga?
___
3 Manuel Mentarfa, O Marco Miliário da Milha XII. Porto, 1948: Archeologo Portuguez. 2 série. 3 (1956), p. 111: Arquivo do Distrito de Aveiro, t. XX. p. 79, e M. Antonino Fernandes, Oliveira de Azeméis Origens e Evolução Histórica, in Rev. TERRAS DE AZEMÉIS. Ano 1. n. 0 (1996), pág. 4/5.Annaes do Município de Oliveira de Azeméis, Liv Chardron, Porto, 1909, p. 10; e Arquivo do Distrito de Aveiro, XIV, 217.Obra cit na nota 3. p. 31.* Monarchia Lusitana, 1 (2. parte), cap. 1. p. 3; e Faria e Sousa, Europa Portuguesa, t. 1. p. III, cap. I.Arquivo do Distrito de Aveiro, t. II (1936), pp. 81 e ss; e PORTVGALIA, nova série, vol. XVI, 331 e ss = Talábriga, situação e limites aproximados, por Luís Seabra Lopes.Archeologo Portuguez, vol. XII (1907), pp. 129 e ss.11 Obra cit, na nota 5.Arlindo de Sousa, Toponímia Arqueológica de Entre Douro e Vinuga. Curitiba, 1960, pp. 414-415.15 Actas das I Jornadas de História e Arqueologia do Concelho de Arouca (1986), p. 39.José Augusto T. Maia Marques, Escavações no Castro de Ut, in Revista de Ciências Históricas, Porto, 1989, vol. IV, pp. 66 e ss.15 Obra cit, na nota 13, onde vem a foto de uma dessas insculturas, com a sua representação invertida. Uma dessas lajes expõe-se no Museu Regional de Oliveira de Azeméis; a outra, no mini-museu da Residència Paroquial de Ul.Obra cit. na nota 10, vol. VII (1903), p. 168; e cit. Rev. TERRAS DE AZEMÉIS. Ano 1. n."0 (1996), pág. 4.11 Obra cit. na nota 14.Obra cit. na nota 2. pp. 91-92.Obra cit. na nota 10, vol. II. pp. 17, 22, 86-88.30 Rec. Ul-vária, II (1995), pp. 53 e ss = O Tesouro Numismático do Castro de Ossela, por António Manuel Silva e José Macedo Mendes Pinto
___
Como explicar mesmo que os Talabrigenses, depois de despojados dos seus bens e de expulsos do seu ópido por Júnio Bruto, fossem convidados por ele a voltar a ocupá-lo?
Como explicar ainda que o nome desta cidade, tão falada na História de Roma e tomada por César Augusto como um dos distritos ou termos”, em que dividiu a Lusitânia, se tivesse apagado da memória dos homens e, em sua vez, surjam outras menos faladas anteriormente, mas na mesma área administrativa e a desempenhar o mesmo papel daquela?
Dado o peso deste conjunto de factos, acrescido de outras razões de natureza geográfica e documental, não encontro outra explicação para o caso, senão a de que a Talábriga primitiva, embora tivesse sido romanizada e pudesse ter continuado de pé até à queda do Império Romano do Ocidente, no séc. V, a partir de então passou certamente a ser considerada apenas como reduto duma velha civilização e não como capital que fora dos Talabrigenses.
Para este efeito, teria sido procurado outro lugar mais afastado do tropel das invasões, mais recôndito e menos exposto a razias.
Isto mesmo sugerem os topónimos COTO e CODAL”, altimedievais, no planalto dos montes sobranceiros ao Antuã, ao Caima e ao Ul. a sugerir a ideia de refúgio e a servir de atalaias a novas povoas, incluídas num efémero território chamado EZEBRÁRIO.
Era o virar de nova página de história e o pôr de lado tudo aquilo que já não servia.
E isto, que aconteceu em todo o Mundo Antigo, não foi aqui excepção.
Pelo contrário, o que ficou dito leva-me até a concluir que aqui se fez sentir mais profundamente.
Daí, a escassez de dados comprovativos incontroversos sobre o primitivo ubi da civilização Talabrigense.
Recorrendo, porém, não tanto a restos arqueológicos dessa civilização mas a informações documentais e topográficas, sou levado a pensar numa nova Talábriga, sucedânea da antiga e com os mesmos limites administrativos, implantada além-Caima.
E essa nova Talábriga surgiria por necessidade estratégica, como consequência das ameaças de Júnio Bruto; e iria erguer-se nas franjas da serra da Felgueira, ou mais precisamente em Cambra que CAMBRA, hoje importante centro urbano, conhecido por Vale de Cambra, figura nos documentos medievais como “território”, designado por CALAMBRIA e CAAMBRIA”, que é um composto de Cala + briga.
Isto mesmo foi já notado por Alexandre Herculano” e por Jorge Alarcão.
Só que limitaram-se a apresentar a existência de Calambria e não viram neste topónimo qualquer relação com Talábriga.
Acontece, porém, que o C inicial alterna com T. pelo menos nesta região, como se verifica nos documentos medievais, em que vemos figurar COLEGILDE por TOGILDE, COOES por TONCE e CHURRICHÃO² por TURRICHÃO, CEROYAS por TEROIAS e TRESOURAS; e CARFANAVAL por TARFANAVAL
Como sucede também o contrário, ou seja, o C permutar em T. o que se observa em BOSCUM, étimo de BOSTO e de BOSTELON
Por sua vez, a nasalação do A de CAMBRA resulta duma dissimilação do L. de CALABRIA em N, observada em diversos casos como NEMBRAR por LEMBRAR, ABOLEMBRA por ABONEMAR, LORMANDOS por NORMANDOS e COLIMBRIA” por CONIMBRIA, topónimo este que teve certamente muita influência na nasalação do elemento CALA, por Cambra ter pertencido à diocese de Coimbra.
Chegamos assim à voz CALAMBRIA, que Corominas considera sinónimo de CÃIBRA, «de procedencia incierta.
E, como inicialmente era esta a voz, por que se designava a actual Cambra, topónimo que domina nas redondezas de Vale de Cambra, sobretudo em Chave (Arouca), não repugna que ela provenha de TALABRIGA seja, portanto, uma legítima representante desta velha civilização ibérica.
Pode pois, asseverar-se que o verdadeiro étimo de CAMBRA não é CÂMARA nem CAIMA, mas a velha TALÁBRIGA, através dos vocábulos evolutivos: TANABRIGA- TANABRIGA-CANABRIGA e CALANBRIGA – CALAMBRIA (1019-1098)-CAAMBRA (1195 e 1355) – CAMBRA.
___
D. Fernando de Almeida, Terminus Augustalis, in Archeólogo Portuguez, 2 série, II (1953), pp. 209 e ss. M. Antonino Fernandes e M. Pires Bastos, Macinhata da Seixa. Briga, 1985, p. 44.Portugaliae Monumenta Historica. Diplomata et Chartae. p. 149, e Livro Preto da Sé de Coimbra, I. p. 178 e III, p. 237="Cambria in Sendiaes". Note-se ainda a existencia de uma outra Calabria, em Fozcoa (ver Dinis Cabral. História de Calabria, p. 50), e que Cambra trio e não território), em Lafões, deriva de "Cambar" (séc. XII) e não de CalambriaAlexandre Herculano. História de Portugal, vol. III, p. 423, e Archeologo Portuguez, t. XII. p. 141.Obra cit na nota 3. p. 111.Documentos Medievais Portugueses, 1 Ill. p. 261.Obra cit na nota 23, Livros de Linhagens, ed. Critica de José Mattoso, vol. 11/2, 44AE7.Idem, ibid. 73E3 e 74A14-5.José Pedro Machado, Dicionário Onamdstico-Emológico da Lingua Portuguesa, Edit. Confluência, voc. TERÇANABAL. vol. III. p. 1400, onde o autor nos informa que, numa narrativa do séc. XII. "é vulgar a permuta entre o Teo C.Santa Rosa Viterbo, Elaciddrio, voc, BosteloTopónimo em S. Martinho da Gandra (Oliveira de Azeméis), já ref. nas Inquirições de D. Afonso III, in Lusitania Sacra. VII. 112. Obra cit. na nota 26 e Livro Preso da Sé de Coimbru, L. p. 145.J. Corominas, Diccionário Etimológico, vol. L. voc. CALAMBRE, pp. 752-753