por António Ayres Martins
O dia 24 de agosto não amanheceu como era de esperar em pleno estio. O tempo resfriara durante a noite, e de manha, o ceu completamente encoberto por grossas nuvens, ameaçava proximos e violentos aguaceiros.
Comtudo, apesar d’aquelle aspecto pouco animador, os festejos continuaram d’uma forma crescente, sem a menor solução de continuidade.
Logo ao despontar do sol, grande massa de povo esperava anciosamente a primeira parte da festividade, que devia ser a ceremonia da benção do novo templo.
Cerca das oito horas, ao toque festivo do hymno nacional, sahiu do palacete do sr. Martins, o preclaro bispo do Porto, afim de dar inicio áquella festividade.
Convenientemente paramentado e acolytado pelos srs. conego Bernardo de Almeida, reverendos Joaquim Lopes, Espirito Santo e muitos outros sacerdotes, D. Antonio Barroso deu ao redor da capella as voltas do estylo, sempre por entre as alas da multidão, que não cessava de o admirar.
Em seguida, o conspicuo sacerdote resou a primeira missa no novo templo, á qual assistiram muitas pessoas gradas, entre as quaes podemos vêr, além de toda a familia Martins, os srs. dr. Carlos Braga, governador civil de Aveiro; Antonio Corrêa Vaz de Aguiar, administrador do concelho da Macieira de Cambra; o commendador Leite, de Amarante; presidente da camara municipal de Cambra, Norberto Tavares de Almeida, etc. etc.
Pouco depois, como era de suppor, o tempo peorou, começando a cahir grossos; e impertinentes aguaceiros, perturbando asşim os trabalhos tão auspiciosamente iniciados.
Apesar d’esta contrariedade, não se notou o menor desanimo, continuando a festividade com o maior enthusiasmo.
Mas o tempo mostrava-se d’uma inclemencia tenaz, e foi debaixo de uma grossa pancada de agua, que o bispo conde, de Coimbra, chegou ao palacete do sr. Martins, acompanhado pelo seu sobrinho, padre Adelino, monsenhor notario apostolico, que foram convidados pelo mesmo sr. Martins para assistirem tambem aos festejos.
Às 11 horas começou a missa solemne, que foi dita pelo conego Bernardo Gomes d’Almeida, sendo acolytado pelo parocho de Palmar, Rodrigo Antonio Fernandes, e prior de Villa Chã, Manuel da Costa Rabello, tendo como ceremoniante o padre Joaquim Lopes.
Sob pallios, ricamente adornados, assistiam á solemnidade os prelados do Porto e de Coimbra, tendo o primeiro, a seu lado, os priores de Roge e de Castellões, e o segundo, o prior de Macieira e monsenhor padre Adelino d’Aguiar.
O lavatorio foi dado pelos ex.mos governador civil de Aveiro, dr. Carlos Braga, commendador Leite e Bento Carqueija.
Ao evangelho subiu á tribuna o rev. Francisco Patricio, que, no exordio do seu brilhante discurso, fez a apologia da acção meritoria praticada pelo sr. José Antonio Martins, cujo alto perfil moral poz em relevo.
Em seguida, desenvolveu n’um estylo fulgurante e cheio de eloquencia, o thema de que a crença catholica continua a ser um poderoso instrumento de civilisação e de progresso.
Este discurso, embora circumscripto a meros exemplos de crença, produziu no auditorio um effeito verdadeiramente assombroso!
Palavra facil e correcta, dicção clara e convincente, o illustre orador pairou, por vezes, no mundo ideal, onde brilharam os astros de primeira grandeza, que em vida, deram pelos nomes do Bossuet, de Lacordaire e de Fénélon.
Quanto á orchestra que tocou durante a festividade, basta dizer que foi a da acreditada capella de S. Thiago, de Riba d’Ul.
Quasi desconhecedores de musica sacra, nada mais podemos fazer do que expor as nossas impressões pessoaes. Temos assistido a muitas solemnidades identicas, mas podemos afflrmar que em nenhuma sentimos tão grande arrebatamento, ao ouvir as notas doces e harmoniosas do Credo e do Tantum Ergo.
Parecia que a alma divina de Mozart, pairando no estreito ambiente do côro, vinha inspirar harmonias que extasiavam, vinha vibrar accordes que elevavam a alma para as regiões do infinito.
Depois da missa, retiraram-se bispos e sacerdotes para a habitação do sr. Martins, ficando então a capella exposta ao publico, que pôde admirar, de perto, todas as bellezas da ornamentação interior.
É verdade que durante a festividade, sempre as portas do templo foram guardadas por sentinellas em grande uniforme; mas’ desta precaução não resultou nenhum desacato que podesse offender o melindre do povo.
Como já tivemos occasião de dizer, o tempo não correspondia aos ingentes esforços do sr. Martins, que evidentemente esperava mais benignidade da estação calmosa.
Os aguaceiros succediam-se aos aguaceiros, de modo que a brilhante illuminação ficou em parte estragada.
Alem d’isto, a côr plumbea do ceo, ameaçando sempre nova borrasca, parecia impedir a sahida da esplendida procissão, o que seria um grande dissabor para todos aquelles que tinham vindo de pontos distantes, só para apreciarem a belleza dos andores.
Comtudo, quasi ao por do sol, o tempo serenou, e todos puderam contemplar as bellas imagens á luz do dia.
Com effeito, ás 6 da tarde, pouco mais ou menos, sahiu do templo a imponente procissão, desfilando pela estrada de Pinheiro Manso, com direcção ao largo da Feira dos Dois.
Aos cinco andores, d’uma simplicidade bella e artistica, devemos accrescentar um sem numero de anjinhos ricamente vestidos, muitos guiões, sendo alguns conduzidos por elegantes meninas, trajando de branco.
Duas bandas de musica fechavam o immenso prestito, um dos mais numerosos que temos observado.
Quando a procissão deu volta para se recolher, no ponto de partida já era quasi noite.
Surgiram então, como por encanto, as luzes multicores, a brilhar como pharoes, para illuminar as trevas da noite.
Lampejavam os archotes, fulguravam as lanternas polychromas, e os balões venezianos semelhavam brandas chamas aéreas a oscillar no meio da escuridão.
Estrugiam no ar bombas dos foguetes e grandes descargas de morteiros ecoavam ao longe, como salvas triumphaes de artilharia.
O aspecto do arraial toniou proporções verdadeiramente phantasticas.
Só a penna maravilhosa das Mil e Uma Noites, poderia traçar no papel o desfilar imponente da procissão, quando de volta para o templo.
Terminada a festividade, houve jantar de gala no bello palacete do sr. Martins.
Os logares de honra foram occupados pelos illustres bispos do Porto e de Coimbra; entre estes tambem se achavam o dr. Carlos Braga, governador civil de Aveiro, o representante do Commercio do Porto, o administrador do concelho de Cambra, o commendador Leite, etc., etc.
Ergueram-se muitos brindes, alvejando todos o sr. Martins, bem como sua extremosa familia, sendo os mais dignos de menção os que foram levantados pelos srs. bispos, rev. Francisco Patricio e governador civil.
Ora, emquanto os convidados do sr. Martins, passavam, á noite, momentos agradabilissimos nos salões do seu bello palacete, lá fóra, tanto no perimetro do amplo arraial, como nos pontos circumvisinhos do templo, continuavam os festejos com a maior animação.
É verdade que o mau tempo viera estragar, em parte, o bello systema illuminativo; mas, apesar d’isso, nunca se viu enthusiasmo mais franco e mais sincero.
Durante a noite continuou a concorrencia dos festeiros, que em grande massa enchiam todas as immediações da capella.
Só muito tarde, talvez cançados pela fadiga da noite, é que os festeiros começaram a retirar-se, levando no peito a doce esperança de voltar no dia seguinte, o ultimo da grande festividade.