A cheia do Rio Caima

A cheia do Rio Caima

Passaram-se duas semanas e a chuva não parava de cair. Tempestuosa, quase diluviana.

Com a cabeça colada aos vidros baços da janela, em forma de guilhotina, gasta e desengonçada, observo o Rio Caima, lá em baixo, junto à da Ponte do Pinho.

A cheia do Rio Caima
Rio Vigues – Coelhosa

Por detrás das vidraças, via-o transbordar, alagando tudo à sua passagem, engrossado que estava, pelas águas do Vigues.

Todos os campos sofriam, começando na Ponte da Gandra e Coelhosa, até aos lameiros de Areias.

O Caima, corre impetuoso, arrastando na sua passagem, as medas de palha que flutuavam na corrente vertiginosa, galgando muros e ramadas, nada detendo aquela fúria descontrolada.

Era a Natureza no seu pior. Na lareira por detrás de mim, ardem alguns toros de couve, juntamente, com as estacas dos feijões, essas, guardadas com redobrados cuidados no palheiro, não resistiram, a mais um rigoroso Inverno.

O frio e a chuva, levaram-nas à fogueira, mais uma vez, em redor da lareira.

Os adultos conversam em surdina, olhos mortiços, olhar perdido, como quem espera, coisa nenhuma, aceitando, o que a vida e a Natureza lhes proporcionava.

Apesar de absorto, com o que via, ouvi o meu saudoso pai, enquanto levava a tigela aos lábios, bebericando uma zurrapa qualquer, (talvez comprada no “Tonecas” ou no “Cavaquinho”), lamentar-se do mau tempo, da falta de trabalho e das consequências, que isso acarretava, agudizando ainda mais as dificuldades, tornando mais penoso e difícil o passar dos dias.

A seu lado, a minha querida mãe, e a minha tia Lucília, acenavam lentamente com a cabeça, como que concordando, com aquele arrazoado de lamentos.

As dificuldades, sentiam-nas elas, todos os dias, fazendo “magia” e inventando (com o pouco que havia), comida para todos, dia após dia.

Os feijões, guardados para semente, acabaram na panela, ajudando a dar substância e tornando, mais nutritivo o magro caldo que, à ceia, naqueles intermináveis Invernos, não poucas vezes, se transformava, em papas de farinha de milho.

Eu a tudo assistia (não imaginando que a minha mente tudo guardava), observando a água, que escorria pela velha chaminé, em gotas enormes, ou em fios contínuos, caindo sem cessar.

Aparadas por baldes ou bacias, colocados em posições estratégicas, à volta da grande lareira, velha de tantos anos onde se notava, os vestígios e as agruras do tempo.

A cheia do Rio Caima

A chuva que fustigava a janela, em guilhotina, gasta, desengonçada, perra dos anos e difícil de abrir, não fazia tenções de abrandar.

Para mim, puto traquina, habituado a andar sem “trela”, era um suplício: não poder ir lá para fora brincar, correr pelos campos e caminhos, ou ir até junto da casa da Ti Idalina do Moreira, olhar o rio caudaloso, que tudo arrastava, galgando os campos, do vale.

Águas turbulentas, sujas, barrentas, que, tempos depois, quando amainavam, tornavam mais férteis os terrenos, arrastando, consigo os nutrientes.

Apesar da intempérie, o desassossego, fazia com que, periodicamente, assomasse à porta da entrada, ficando a olhar para a estrada, observando os grossos salpicos, que faziam figuras grotescas, ao bater no alcatrão negro, indo depois pelas valetas, engrossar ainda mais, o caudal do Caima, tudo varrendo em direcção ao rio.

A cheia do Rio Caima

Com o rosto colado às vidraças, eu contemplava os campos alagados e sonhava.

Sonhava que era um pirata, (andava a ler o Sandokan, Tigre da Malásia) que a sua escuna majestosa e velas desfraldadas, navegava naquelas águas turbulentas e dava ordens aos seus homens, gritando por cima do rugido das águas e dos ventos, que uivando, enfunavam e fustigavam as velas desfraldadas.

Estava eu neste sonho, quando uma voz que me chama:

– Ó Tino!

Absorto que estava, não ouvia, estava longe. A voz insistiu num tom mais forte e decidido:

– Tinooo! Ó Tino!

Acordei da fantasia e do sonho. Virei a cabeça e vi que era a minha mãe que chamava.

– Que me quer? respondo-lhe eu.

– Chega-te aqui, pega nesta malga de café e esmigalha-lhe broa. As côdeas, ficam mais moles e comem-se melhor. O açúcar está na lata, no armário grande!

Desperto que estava do sonho, fiquei contente, pois o negro café quentinho, feito ao lume, com as negras côdeas ia saber, mesmo bem.

Aquele dia longínquo, naquele cenário tão rústico, (digno dum Malhoa, ou Columbano) frugal, mas simultaneamente, puro e verdadeiro, aproximava as famílias e as pessoas, tornando-as mais solidárias.

Hoje, já adulto, os sons da chuva, batendo na vidraça, as gotas a caírem da chaminé e o chamamento da mãe, para comer o café, com a broa negra esmigalhada, não me abandonaram, ecoam ainda, nas minhas memórias mais profundas.

O menino (eu) tornou-se homem. As pessoas foram morrendo. O rio Caima (ainda) corre no mesmo leito.

Os campos foram abandonados. O rio já não transborda com a regularidade de outrora, porque até a Natureza, cansada de tanta asneira, foi mudando as estações.

Já não há sons na velha casa. O vento, não ecoa na velhinha chaminé, entretanto demolida, substituída por uma chaminé «moderna».

Contudo, aqueles sons, aromas e imagens, continuam tão presentes, que ainda hoje me perseguem.

Talvez seja eu que, com o avançar da idade, e a turbulência da vida, tento agarrar tempos, que já não voltam.

Quanto eu pagaria, para pelo menos, nem que fosse apenas uma vez, ouvir os resmungos de meu pai, contra o tempo, a falta de trabalho ou até dirigidos a mim, ou olhar para minha mãe, serena, dócil.

Talvez um pouco submissa, um pouquinho apenas, só mais uma vez, mexendo os feijões, retirando uma porção com o gadanho, provando um, e dizendo: – Estão bons!, fazendo o que as mães faziam, inventar comida….

Coelhosa, 23/10/2009

Aventino Monteiro (latoeiro, fazedor de latas)