Autores sobre a romaria da Senhora da Saúde

A romaria da Senhora da Saúde na perspectiva de autores, prosadores e poetas

Senhora da Saúde
Senhora da Saúde

Ferreira de Castro

Ferreira de Castro descreve assim o arraial da Senhora da Saúde e dos seus romeiros:

Estamos já ao pé da serra que se levanta por detrás de Castelões, fechando o Vale de Cambra.

E no seu pico ergue-se a Senhora da Saúde, ermida até há pouco, recentemente templo maior, acompanhada por um albergue.

Para a festa que, lá em cima, se celebra todos os anos, começam a passar aqui, na madrugada de 14 de Agosto, verdadeiras multidões. Vem gente da beira-mar, a muitas léguas de lonjura, vem gente de todos os concelhos próximos, das montanhas vizinhas e das montanhas distantes e até do Porto e de Coimbra gente vem.

Desde as regiões vareiras às regiões de Arouca, não há estrada nem sinuoso atalho onde neste dia não se projecte a sombra dos romeiros a caminho da Senhora da Saúde.

Empregam todos os veículos: a tartana remota, que se julga tirada de museu, a diligência de há tantos anos, carroças, tipóias, carros de bois engalanados, camionetas e automóveis.

A maioria vai a pé e a pé nu que a festa nasceu humilde como a capelita primitiva e é, sobretudo, para gente de pé descalço.

Lá vão elas com os pés grandes sobre o pó dos caminhos, a saia nova a bater-lhes na barriga das penas; sobre a blusa de cor, estreada agora também, os oiros do povo; nas orelhas as arrecadas e, sobre a cabeça, um cesto com o farnel. Ao lado vão eles.

Como ganham mais dinheiro que elas, compraram sapatos para este dia; levam cavaquinhos harmónicas, violas e, desde madrugada alta, começam a cantar por todos os caminhos.

Chegados à ermida, não entram, que já a viram da primeira vez que ali vieram e a festa é mais pagā do que outra coisa. O píncaro está cheio de bandeirolas, de vendedores de quinquilharias coloridas, de frutas estivais, de chitas das mulheres; não há maior cromatismo em parte alguma, nem bulício maior.

Eles e elas pousam o farnel debaixo de velho carvalho, na vizinhança de um caro de bois com a pipa de vinho em riba, e logo desatam a bailar, não acompanhando a música da filarmónica de Cambra, e sim a dos milhares de instrumentos que os romeiros levam. Bailam, cantam, suam e comem durante o dia inteiro.

À noitinha, as chitas das raparigas, depois do sol e do suor, desbotaram levemente; mas elas e eles compram plumas tingidas e estampas polícromas; colocam-nas no peito e no chapéu e assim adornados, iniciam a descida da serra, sempre a cantar e a bailar, enquanto outros, dispondo de maiores ócios, gastam a noite a fazer a mesma coisa no arraial.

E cantando aqui, parando ali para o bailarico, fazem léguas e léguas,
até que a voz do oceano, lá para as terras de Ovar, se sobreponha à voz deles e delas, ou o silêncio das montanhas arouquesas lhes lembre que chegaram a casa – às preocupações da vida, ao árduo trabalho pelo magro pão de cada dia.
[5]

Júlio Diniz

Júlio Diniz, em A Morgadinha dos Canaviais refere-se à Senhora da Saúde e ao local do Santuário:

O monte onde se erigira a capela da Senhora da Saúde, afamada pelos seus milagres e pela sua romaria, num círculo de muitas léguas de raio, era uma elevada rocha vulcânica que dominava as freguesias rurais de mais de dois concelhos.

Estendiam-se-lhes aos pés as alcatifas da mais rica vegetação… […] A vista segue, segue por cima de campos, de devezas, de aldeias, e tão longe, tão longe que só pára no mar.

– É o Vale de Cambra.

E o mesmo escritor em As Pupilas do Senhor Reitor escreve:

Havemos de ir breve.., que já mo prometeu. Há-de ser à Ermida da Senhora da Saúde. Se soubesse como lá é bonito!

A vista segue, por cima dos campos, de devesas, de aldeias, e tão longe, tão longe, que só pára no mar. Não se pode estar doente ali: verá!

António Martins Ferreira

Também António Martins Ferreira recorda:

A 8 quilómetros ao sul da vila de Vale de Cambra e a 5 da Igreja Matriz de Castelões, onde o panorama é vasto e arrebatador, alveja no cimo da serra de Gestoso a 700 metros de altitude a bem conhecida Capela de Nossa Senhora da Saúde da Serra e, desde tempos antiquíssimos nos dias 13, 14 e 15 de Agosto ali se realiza uma das mais concorridas e típicas romarias do País.

Nos dias de festa, num cortejo quase ligado, muitos milhares de romeiros de todas as classes sociais e alguns vindos de longínquas cidades, vilas e aldeias da beira-mar e da serra, na maioria a pé e com trajos garridos, violas, tambores, harmónicas, cavaquinhos, pandeiretas, etc., sempre a tocar e a cantar.

Sobem, andam no arraial e descem a serra em balbúrdia pegada; outros fazem o trajecto em carripanas, carroças, carros de bois, camionetas e automóveis, na maioria engalanados e na viagem, ao passarem uns pelos pelos outros, agitam lenços, trocam chalaças e dão gargalhadas.

No arraial nada falta. Pipas Com vinho são às dezenas; restaurantes; cafés, “bares” e botequins dão ao arraial aspecto engraçado; vendedores e vendedoras de pão, doces e frutas são aos centos e dúzias de mulheres a fritar peixe.

Fotógrafos, barbeiros, floristas, vendedores de quinquilharias, roletas, mulheres a ler a sina e outras a vender água fresca, etc., etc.; ali tudo existe em quantidade para satisfazer as exigências dos romeiros.

Dentro e em volta da Ermida, grande multidão faz preces. Uns de pé, outros de joelhos, rezam, queimam velas, ouvem prelecções religiosas e oferecem dinheiro, ouro, cera e outros objectos conforme cada um prometeu à Virgem Maria.

Na esplanada, tocam músicas, estalam foguetes, canta-se, baila-se, fazem-se correrias e sua-se a bom suar; à sombra das árvores e em barracas cobertas com ramalhos, come-se, bebe-se, e descansa-se e dorme-se. Não há romagem com maior devoção, folguedos e alegria.

É uma romaria retintamente portuguesa. São tantos os milagres que Nossa Senhora da Saúde da Serra faz e o seu arraial goza de tanta fama que de Aveiro, Porto, Coimbra e Viseu afluem inúmeros devotos. [2]

António Martins Ferreira refere ainda:

O planalto de Gestoso, a 7 quilómetros de boa estrada ea 700 metros de altitude, é, decerto, a tribuna de honra de Vale de Cambra e, talvez, da Península.

O mundo, visto dali, tem de tudo um pouco. As serras desdobram-se umas após outras, os vales sucedem-se uns para além dos outros, as moradias dispersas, as vilas, cidades e aldeias semeadas a esmo nas chãs e nos outeiros, e lá ao cabo, a muitas léguas, o mar, as traineiras e
lá mais adiante, já no grosso das águas, as grandes embarcações.

Um conjunto que forma a maravilha das maravilhas! O homem que tem a dita de subir ao planalto de Gestoso, por espírito forte que seja, curva-se e tira o chapéu.

É que, ali, a obra da Natureza, por força sobrenatural, obriga a render a homenagem ao Poderoso. Esse sobrenatural que existe ali é o Santuário da Mãe de Deus, invocada – desde há muitos séculos e a muitas léguas de lonjura por Senhora da Saúde da Serra [3]

António Correia de Pinho

António Correia de Pinho fala assim da romaria da Senhora da Saúde nos anos 50:

Lombela acima deixando para trás a metade chã dos verdes milharais que ladeiam os rios Caima e Vigues, e tendo pela frente a escarpa semi agreste do Covo, a vão os romeiros a caminho do alto do Gestoso.

Vem movidos pela fé, vêm agradecer curas de moléstias que os assolam ou aos seus familiares ou, então, pedir saúde à Santa mais venerada em léguas ao redor.

Só essa fé os arrasta de tão longe, sob o sol escaldante de Agosto, sorvendo o pó da estrada de macadame. São gentes de Salreu, Pinhão, Pindelo, Cesar, Fajões, Arouca, deixando as silhuetas sobressaírem por sobre a ponte de arco romano de Areias, virando no Castelo, passando pelo Mártir, Lombela, Rabaceira…

Muitos, vindos da beira-mar trazem consigo o pó das estradas de Aveiro, Ovar, Estarreja e Murtosa, e atalham a Palmaz. São os vareiros e vareiras vestidos tradicionalmente, trigueiros e de feição fenícia.

A Senhora da Saúde
Lá está no altinho
Cá em baixo faz calor
Lá em cima corre um ventinho.

Os miúdos dos Casais, de Cabril e da Landeira, acocoram-se em frente ao “Hospital”, na bifurcação da estrada principal com o ramal de Cabril, para verem estas gentes estranhas a passar.

Há um misto de admiração e de ânsia de contacto com estes seres desconhecidos, de estranheza pelas suas roupas e portes diferentes, sua pele tisnada pelo sol em alguns, e pelo sol e o mar em outros. Há também no ar um certo aroma de festa que invade a alma das crianças e as faz comungar desta bem-vinda novidade, desta saída da vida rotineira da aldeia.

É como se elas fossem transportadas a uma distância longínqua, a um meio desconhecido e misterioso.

Os romeiros passam em bandos. O chapéu fabricado em S. João da Madeira protege a cabeça dos homens do sol abrasador que se refracta em camadas até ao solo.

Um cajado ou uma bengala serve de apoio na caminhada e, por vezes, para transportar ao ombro um garrafão de vinho e ainda, como arma de defesa e de ataque nas brigas que possam eventualmente surgir.

Os cestos de vime, estaticamente assentes sobre a rodilha arredondada no topo da cabeça feminina, transportam o farnel para dois ou três dias.

Passam a cantar modinhas da terra, no mínimo com uma segunda voz em alto timbre. Começando manhã cedo e continuando durante todo o dia e toda a noite de 12 e 13 de Agosto, os bandos vão subindo, encosta acima, na lenta sofreguidão do descanso e também de sentirem o halo místico da Santa de seus favores.

Caminhos, veredas
Cobertos de gente
O povo é às medas!

A “Nossa Senhora da Saúde de Baixo”

Para-se na Rabaceira, na loja do Ti Vital (Vital Duarte Lopes) e da mulher, Ti Glória.

O Ti Vital tem, no pequeno e confinado largo ao lado da loja, um palanque de madeira onde actua um conjunto formado por concertina tocado a preceito pelo ferreiro Silvino (que mora, e tem oficina, com um velho fole e uma já gasta bigoma, ligeiramente abaixo da Escola do Côvo), um bombo e uma viola braguesa de seis coradas duplas.

Aqui dança-se desde o dia 12 até ao dia 15 do mês. É paragem obrigatória de romeiros e de castelonenses.

Há um cheiro a alecrim e a rosmaninho, a folha de louro, carne de porco e vinho que trespassa as narinas e se aloja triunfante no coração e salta fora através da verborreia inusitada das gentes. É a “Senhora da Saúde de Baixo!”

Sem Santa, mas com devoção, mais pagã e mais profana, mas mais do gosto de quem tem à mão festa rija sem ter que subir até ao Alto da Serra.

Depois, o Ti Vital tem sempre uma boa carne assada e, sobretudo, as suas incomparáveis sandes de queijo da serra curado ou de chocolate negro e semi-amargo. Para além do mais, o tinto do Ti Vital é uma “pomada” de qualidade, indispensável à refeição e à alma.

Da Rabaceira até Cartim

Vieram os romeiros pelo empedrado do caminho da Rabaceira ao Talhadouro, desfrutando da acolhedora sombra das ramadas altas de uvas de vinho verde.

Vão todos contentes
Cantando e bailando
Não cansam nem sentem
A testa suando!

Sobem ao Mourio e param para um olhar descansado sobre o vale. Daí já se avista o sítio de Cabril e, através dos espaços deixados entre as ramas dos pinheiros, os campos verdejantes ladeando o Caima.

De novo, a pé, sobem a ladeira rústica até Cartim. Paragem agora na loja do pai do António e na do Amadeu de Cartim.

Ficam no cimo da circunvalação que termina na estrada velha. Por isso é obrigatório mais um tinto para animar, para ocultar ou desvanecer as dores de pés que, abalados nas botas de atanado, suam e amolecem em demasia a pele e os tecidos circundantes. A Senhora está com os romeiros.

Estrada velha acima

A partir da loja do Amadeu começa a estrada ondulante, cavada naturalmente no flanco do monte, por cima da estrada nova que está em construção. Lá em baixo, os camiões movidos a “gasogénio” transportam pedra para o macadame da nova estrada.

A velha estrada, recentemente arranjada por iniciativa do Padre Joaquim Manuel Tavares, curva-se acentuadamente nos pequenos vales, ali onde os córregos deixam cair, quase na vertical, grosso fio de água fria, cristalina, filtrada pelo granito.

O povo caminha sobre as pedras já arredondadas pelo tempo e sob a luz do sol coada pela ramagem dos pinheiros, carvalhos e eucaliptos que ladeiam a estrada.

Ora passa um carro de bois, com modesta ornamentação em volta dos fueiros de pau, transportando pipos de vinho e gente, ora uma carroça com ciganos, alguns sentados em cima, outros caminhando ao lado, todos de preto vestidos.

O falatório e as cantigas ajudam a passar o tempo, a superar as dificuldades na subida e a longa e penosa caminhada que chega a levar, só da Lombela, umas três horas.

Passa um grupo em que um homem e uma mulher cantam ao desafio. Outros grupos se esforçam por seguir os cantadores em despique encarniçado e impiedoso, porém brejeiro.

Um bando passa agora a cantar cantigas religiosas. Mais atrás, uma mulher vai rezando o terço, com o coro a responder a meio das Avé-Marias e dos Pais-Nossos.

Chega-se agora às Forcas, paragem obrigatória. Nesta curva apertada há sempre uma brisa, como que encomendada por Nossa Senhora para refrescar os romeiros na etapa final de caminhada. Por vezes, a brisa dá lugar a um vento forte. A vista é retemperadora, inebriando a alma.

Mas nesta devesa
Descansai agora
Que o sol é fervente
A fresca aqui mora.

Já falta pouco. Nova arrancada, bandos quase unidos, gente mais animada, mais fervorosa.

O tojo, a carqueja e a urze ladeiam o caminho, dando a sensação de leve aspereza ao ambiente. Atrás e ao fundo fica o vale verde, rodeado pelos tons castanhos-esverdeados dos flancos dos montes.

A abóbada celeste, de um azul esmaecido, completa o quadro de festa que já se vive ao aproximarem-se as gentes do termo da caminhada.

A chegada

Eis Gestoso! Aqui no alto, casas de pedra rústica e telhado vermelho e canastros com suas típicas ripas de madeira na parte cimeira salpicam a encosta em socalcos, nos espaços deixados pelos campos de milho, terminando tudo na vastidão dos pinheirais ao longe.

A ramagem de carvalhos, acácias, cedros e plátanos separa o casario da Capela de Nossa Senhora da Saúde, que se eleva aos céus através da sua cruz assente sobre a cúpula piramidal.

Há murmúrio e emoção nesta festa da fé, do pó seco cobrindo as botas, chinelas e tamancos, ao som dos bombos e concertinas.

É a simbiose da Natureza com o lado anímico e místico do Homem. Deus e o Homem! O Homem e Deus!

A primeira tarefa é buscar uma sombra para o grupo se sentar e comer e descansar. Os grandes espaços foram tomados pelas barracas de comes-e-bebes e de brinquedos fora do muro que cerca a capela.

Revezam-se as pessoas. Ficam umas a tomar conta dos farnéis, enquanto outras vão cumprir as suas promessas.

Promessas e Penitência

Mormente as mulheres, de terço na mão e a alma em Nossa Senhora, arrastam-se de joelhos no chão em voltas intermináveis ao redor da capela, algumas acompanhadas pelos seus homens, filhos ou filhas.

A devoção é grande. A consciência da existência do sobrenatural é milenar e vem passando de geração em geração, desde que o Homem é Homem, transparecendo aqui no fervor, na humildade e na esperança de um mundo melhor, menos atribulado.

O calor nesta tarde de Agosto castiga mais os romeiros nas suas voltas penitenciais ao redor da capela. Os que as acabam entram na capela para uma oração final em frente à imagem da Senhora e para as ofertas temporais.

Na pedra e na base do altar, localizado no lado esquerdo de quem entra, os romeiros deixam os retratos de familiares, cordões e anéis de ouro de lei ou figuras humanas de corpo inteiro, braços ou pernas e velas de cera, as últimas compradas nas duas bancas montadas nos dois cantos atrás da capela, de propriedade de profissionais vindos de Cesar.

A capela por dentro

A capela, de portas e janelas ogivais, é dominada, no seu interior, pelo branco das paredes, pelo azul do tecto de madeira e pelos azulejos que debruam a parte interior das paredes.

Impressiona também o azul dos painéis da Via Sacra, de um lado e de outro da nave principal. O resto e madeira castanha envernizada dos altares, das portas e dos bancos comidos à esquerda e à direita.

Um grande rosário está cravado no tecto da capela. Foi torneado e colocado pelo Ti Alberto Fuste (Alberto Galinha) dos Casais que também construiu o altar da Santa Joana D’Arc.

O Ti Alberto conta que, quando andava a implantar o rosário, uma criança de uns oito anos, vinda de Ovar, metida numa camisa de forças, deu uma cuspidela para cima que chegou ao andaime onde trabalhava.

“Quem és tu? – perguntou o Ti Alberto lá do alto. “Sou o Lúcifer, o Maioral do Inferno e trago carapuça e botas de ferro – retorquiu o rapaz.

O Ti Alberto foi informado que o miúdo teria o demónio dentro dele e alguns homens tiveram que o segurar pois nem a camisa de forças parecia resistir a tamanha explosão de energia.

Mais tarde, foi também informado que ele fora curado por via de promessas feitas pelos seus familiares a Nossa Senhora da Saúde.

Comidas, bebidas e cantigas

Abrem-se os farnéis. Aqui no meio de um grupo, há arroz, carne assada, bacalhau frito; ali, comem-se pastéis de bacalhau, ovos cozidos, chouriço cozido e pão de Ul. Vê-se também acolá broa de milho, rojões, frango cozido e assado.

Troca-se comida de grupo para grupo e os garrafões de vinho verde e maduro, tingidos pelo derrame do precioso líquido no vime entrelaçado do exterior, giram de boca em boca, de um lado para o outro.

Está chegada a noite. Chega enluarada, mística, prenhe de feitiço e de promessas de amor e de saudade.

As pessoas amontoam-se a dormir ali debaixo dos carvalhos. Muitas o fazem no chão das barracas dos comes-e-bebes, sobre uma “mancheia” de fetos verdes colhidos nas redondezas, alumiadas levemente pela luz do gasómetro.

O som de uma harmónica de boca de um lado e da concertina acompanhando uma cantiga de outro, vibram dolentemente na noite, fazendo jus ao tão cantado inebriamento do luar de Agosto.

A Senhora da Saúde
Deita fitas a voar
Eu que sou sua afilhada
Algumas hei-de apanhar.

A noite não vai ser longa e serena: uma ou duas horas de sono leve são suficientes para a recuperação do corpo e da alma. É uma agitação febril que acaba em grupos se reorganizando e cantando ao desafio pelo resto da noite.

O dia 14 de Agosto

No dia 14, de manhã cedo, há já muito movimento. É este o verdadeiro dia de festa. Centenas de romeiros continuam a chegar ao alto, em grupos, suados, cobertos do pó da estrada.

É grande a afluência de gente ao fontanário que tem quatro bocas de água saindo da parte inferior de uma parede branca a qual termina, no cimo, com quatro elevações em arco arredondado.

A Banda de Pardilhó, a preferida do Padre Joaquim, está já no coreto, ali no lugar do fontanário, tocando uma marcha a preceito e já muita gente a escutar à volta.

Logo virá a Banda de Vale de Cambra em disputa acesa com a de Pardilhó, eternas rivais nas redondezas e no País.

Nas barracas vende-se de tudo, e, por isso, estāo pejadas de gente. Num dos sectores vende-se santinhas e santinhos de barro, o boneco saloio do “Queres-Fiado-Toma” e canecas de barro com uma careta de bigodaças.

Uma ou duas vendem “caminetes” de carga, feitas de lata. Numa das barracas puxa-se uma guita e sai um número premiado que dá direito a um apito de barro ou outro prémio, em geral, de pequeno valor, já que os de melhor qualidade estão expostos para excitar e atrair as pessoas.

Há bombos pequenos, bonecos de madeira e pedalar e harmónicas de boca “Fado Português” e “Honner“.

Noutro local compram-se cavacas, corações com bolinhas vermelhas e roscas com açúcar branco por cima. Há também os famosos melindres e outros doces de Arouca.

Vende-se padas de Ul em cestos revestidos com panos de linho branco.

A “Maridinha” de Mourio todos os anos ali assenta o seu lugar de venda de refrescos de groselha e de aguardente com água e açúcar.

Compram-se molhinhos de manjerico a mulheres que os têm sempre molhados por aspersão de água em cestinhos de vime que os rapazes dão a cheirar às raparigas.

Muitos homens trazem, presa na cinta envoltória do chapéu preto, uma imagem de papel de Nossa Senhora da Saúde.

Passa agora uma rusga com bombo e pandeiretas. Faz-se uma poeira no ar.

Há alegria por todo o lado! Ciganas de longas saias pretas lêem a sina na palma da mão das raparigas, prevendo viagens por alto mar, casamento em dois anos e muitos filhos de um homem chamado Joaquim.

Debaixo de uma carvalha, um grupo dança o valseado, iniciado com passos lentos para trás e para a frente depois sai “vira-flor” e corridinho e canta-se e dança-se a “cana verde”.

Os melões de Almeirim amontoados em pilhas junto às barracas de comida ou debaixo das árvores, são apalpados e cheirados antes da compra.

O melão exige vinho de tostão e, junto com a melancia, tem lugar de honra nas comezainas da romaria.

A capela continua a regurgitar de gente, a ouvir missa. Os cânticos religiosos ecoam pelo caminho rebaixado desde a Capela até ao Cruzeiro.

Há burburinho para os lados do fontanário. O povo sequioso de sensações, corre a ver o que é. Os paus estalam no ar. Há bordoada entre grupos rivais de Cavião e de vareiros.

A Guarda Republicana chega atrasada com as suas espingardas “Mauser” em riste. Há sangue em algumas cabeças e mulheres a chorar esganiçadamente. Vão presos alguns vareiros que, diz-se, começaram a refrega e são levados para a cadeia localizada acima atrás do lago fronteiriço à Capela e do monumento em estilo obelisco, erguido com as esmolas dos romeiros no ano de 1927.

Por cima e atrás da prisão fica um tanque, seguido de áleas muralhas de um lado e do outro com muitas pessoas sentadas a descansar.

No alto, no final dos muros e do outro lado do caminho localizam-se dois restaurantes, que apenas funcionam nos dias de festa e estão sempre à cunha: um deles tem o aspecto rústico dado pelas lajes de xisto quartzítico da região que forma as suas paredes e o outro, de paredes pintadas de branco e de portas vermelhas de madeira, fica a uns vinte metros do primeiro.

Em ambos é famosa a vitela assada no forno com arroz e batatas e carne de vaca assada.

A procissão

Sai agora procissão. À frente vão três irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Saúde, com opas vermelhas, o do centro elevando uma cruz ao Céu e os outros dois com lanternas.

A procissão sai da Capela, desce as escadas da álea direita até ao Cruzeiro e volta à Capela pelo outro lado. O Cruzeiro não é mais que uma cruz talhada em granito com a base assentando em quatro rodadas circulares de degraus.

A maior parte da gente não cabe na procissão e fica da parte de cima e da parte de baixo dos muros a cantar os cânticos entoados inicialmente pelos três padres que seguem, de baixo do pálio, atrás do andor da Nossa Senhora.

Mais atrás segue a banda de Vale de Cambra, com a sua farda cinzenta, tocando com esmero uma música suave, cadenciada a intervalos pelo som estridente da caixa e, depois, pela entrada simultânea e harmoniosa, desde a flauta ao cornetim, do clarinete à tuba e do bombo.

Da casa da Junta, do lado de trás e ligeiramente abaixo da Capela, os convidados especiais para os festejos acompanham discretamente a passagem das rusgas e ouvem as bandas de música a tocar.

O final da festa

No dia 15 a festa tem ar de mais sossego. Muitos romeiros se foram, estrada abaixo, de regresso a suas terras.

No fim do dia 15, ao termo das festas, o Adelino de Gestoso, que mora ao lado da Capela, vai fechar todas as portas da mesma e solta um som de alívio pelo fim da barafunda.

A área está suja de casca de melão, papéis de embrulho e ossos de frango.

Lá do alto, a Capela da Senhora da Saúde continua a contemplar o inigualável Vale de Cambra e espraia o seu olhar pelas terras vareiras, em lânguido abraço entre a serra e o mar..

Publicado no jornal “A Voz de Cambra”, em 15 de Novembro de 1999

João do Crasto

João do Crasto descrevia assim o arraial:

O arraial com os tradicionais divertimentos de folguedo, barracas de quinquilharias, tendas de vendedoras de doces e regueifas bem fornecidas, barracas de “comes e bebes’, botequins e cafés e, em destaque, as pipas de vinho instaladas nos carros “chiões” que as transportavam, enfeitados com ramos de loureiro.

Estralejavam foguetes e o fogo-de-artificio era feérico e abundante, talvez porque algumas fábricas famosas de pirotecnia estavam sediadas nas proximidades da região.

Não faltavam também os “cantares ao desafio”, de grande tradição, especialmente nas gentes da beira-mar.

Lembra o cantador Marques Sardinha com a sua longa barba branca de profeta que, apesar da sua provecta idade, despicava em desgarrada com a Margarida Réis e a Barbuda, em jeito que o povo muito apreciava.

E por toda a parte se viam bailaricos ao som de instrumentos populares e descantes que fazem parte da cultura do nosso povo… [8]
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2 Dos cantadores que passaram pela Romaria, o mais conhecido é Marques Sardinha. Nasceu em Sardinha, Avanca, em 2 de Abril de 1859. Faleceu solteiro em 1 de Abril de 1941. Mal sabia ler.

Cantou várias vezes para a Família Real Portuguesa e seus convidados. Ele e a sua companheira de cantigas, a Maria Barbuda, foram e são uma lenda, sobretudo nas terras que os viram nascer: Avanca e Estarreja.

Maria Barbuda nasceu em Beduído, Estarreja, em 16 de Setembro de 1869. Chamava-se Maria Marques de Sousa. Faleceu em 31 de Dezembro de 1946. Era analfabeta. Tinha umas grandes barbas. Usava lenço apertado na cabeça e grande cordão de ouro [7]
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Quadras populares mais recentes em louvor de Nossa Senhora da Saúde, lá no alto de Gestoso, por João do Crasto, em Julho de 1996:

A Senhora da Saúde
Na encosta daquela serra
Pedimos muita saúde
E que nos livre da guerra.
Ela é padroeira
Desta terra abençoada
De Vale de Cambra a Junqueira
E por todos venerada.
Vêm de longe romeiros
Suas promessas pagar.
Caminham dias inteiros
Para aqui poder chegar.
Alguns vão lá só por gosto,
Mas outros por devoção:
No dia quinze de Agosto,
Como velha tradição.
Nesta quadra festiva,
De farras e romarias,
A fé torna-se mais viva,
Entre Manéis e Marias.
A maioria do povo
Nunca falta à romaria,
Quer seja velho ou novo
Quer de noite, quer de dia.
A Senhora da Saúde
Nas faldas do Arestal,
Rogamos que em breve mude
O que no mundo vai mal.
Há quem lá vá por prazer
E também por devoção
Algumas vão satisfazer
Anseios de coração.
Há quem vá cumprir promessas
Das horas desesperadas,
Vêm de longe e às pressas,
Em compridas caminhadas.
Também há os que lá vão
Com intenções bem profanas;
Esses têm vocação
Para apanhar “carraspanas”
Lembro-me duma poesia,
Numa pipa pendurada,
Que por graça assim dizia:
“Beba e não pense mais nada.
Deste bom vinho de Urgeiras,
Que não prejudica o estômago
Nem motiva bebedeiras
Se for bebido com regra
Durante vidas inteiras”.
Desde a serra até ao mar
Ali se juntam romeiros,
Com promessas a pagar
Durante dias inteiros.
Há quem dê voltas ao adro,
De joelhos pelo chão;
Num doloroso quadro
Que nos causa compaixão.
Outros vão acender velas
Pelas suas intenções,
Com suas crenças Singelas
De arreigadas devoções [10].
José Martins de Pinho

José Martins de Pinho lembra-se de um dia ter ido à Senhora da Saúde talvez no ano de 1927, com três anos de idade apenas.

Portanto, já nos anos vinte, segundo ele, os seus pais iam ao arraial com um botequim, negócio usado nesse tempo nos arraiais, que se destinava a fazer uma barraca com varas de pinheiros, para depois forrar com panos de lençóis, um balcão e bancos de tábua, tendo a barraca cerca de seis metros de comprimento por três de largura, destinada à venda de doces, cafés, vinhos finos, anis, etc.

A luz era um gasómetro, o chão era forrado com “feitos” apanhados nos matos próximos que serviam para o tornar mais macio para a dormida.

No dia treze, começavam a chegar logo pela manhã as gentes da beira-mar.

O que mais lhe despertou a sua curiosidade foi sem dúvida os seus trajos e cantares.

Os homens com calças de flanela aos quadrados justas ao corpo e com uma perna mais arregaçada e descalços, um cinto de pano largo com uma faixa caída do lado esquerdo da perna, um chapéu com a estampa da Nossa Senhora, um lenço vermelho ao pescoço (lenço tabaqueiro), apertado com a parte exterior de uma caixa de fósforos.

As mulheres com grandes saias rodadas de “multicores”. Tanto os homens como as mulheres mostravam o rosto queimado pela vida de trabalho à beira-mar.

Eram, sem dúvida, os vareiros, dançavam às carreirinhas e cantavam à desgarrada.

A parte sul do parque era onde os vareiros sentavam arraiais e guardavam os farnéis nas barracas e marcavam a dormida na mesma.

Era o Vale das Vareiras, para cantar, comer, dançar e dormir até ao dia 14, dia em que começavam a regressar todos ou quase todos, a pé, alguns em carros de cavalos.

Uma grande dúvida, porém, reinava no seu espírito curioso e infantil: eram as vitelas vivas presas perto dos fornos feitos no chão na parte norte do arraial, a seguir ao caminho de Gestoso.

Para que seriam as vitelas?
Foi espreitar!

Mas nunca mais se apagarão da sua memória aquelas pancadas na cabeça das vitelas com um martelo até caírem inanimadas.

Foi a correr perguntar à sua mãe; ela acarinhou-o e disse-lhe: “Olha filho, eles são maus, não vás para lá”.

Fugiu outra vez, mas foi ver o que se passava nas barracas dos brinquedos: gaitinhas, carrinhos, harmónicas de boca, etc., e pensava: “Caramba… se eles não tivessem rede a defender os brinquedos, até me apetecia rapinar algum”.

As barracas eram: os botequins, as de comida, onde se comiam as vitelas; vendiam-se muitas coisas, tais como, regueifas, melões e melancias, levados para lá em carros de bois ou cavalos, manjericos, as florinhas de papel e penas com uma quadrazinha num papelinho sempre alusivas ao amor.

Mas o negócio era mais forte na venda de pandeiretas e bombos pequenos.

Tanto os vareiros como outros compravam pandeiretas para animar as rusgas dando “pancadas” com elas nas cabeças uns dos outros, até rebentar a pele, que geralmente eram de pele de coelho.

O vinho era sempre o grande animador do movimentado arraial levado para lá em carros de bois, as pipas que ficavam à sombra de um sobreiro ou carvalho até ao dia de festa; o gado ia levar-se a casa.

Os anos foram passando, ele foi crescendo e já talvez com os seus sete anos de idade viu pela primeira vez ir um carro a motor à Senhora da Saúde.

Era o carro dos pirolitos. Talvez essa velha camioneta com rodas de raios de madeira, à ziguezaguear constantemente para progredir, desde o lugar de Cartim, pela estrada velha, com buracos apenas tapados com poeira fina, até ao arraial.

Às vezes ele e a gaiatada acompanhavam o andamento da camioneta dos pirolitos e até lhes pediam para a empurrar para ela vencer a subida.

Em princípio não sabiam para que era aquilo. Mas quando lá chegou, ele até pensava que seria para fazer café, pelo motivo de ferver como uma grande panela, lá encostou a uma torneira de água, lá na festa, e começou a engarrafar: água e soda, soube mais tarde, três tostões.

Não davam vencimento a tanto negócio feito naquela traquitana e a fazer tal “mistela”.

O proprietário era natural de Castelões, portanto negociante da casa. Para se abrir a garrafinha do pirolito, era necessário meter um dedo no gargalo e empurrar para dentro uma esfera de vidro, como quem olha a galinha para ver se tem ovo.

As mulheres já habituadas a olhar as galinhas tinham mais facilidade que os homens. Mas assim era a festa com as rusgas e o povo a cantar a dançar.

Os farnéis comidos à sombra, com os bons galos de capoeira, o presunto e chouriço caseiros de um paladar e cheirinho que sabia bem comer. O vinho puro das uvas bebido directamente das pipas dos lavradores que era tão bom!

Às vezes dava para uns ajustamentos de contas, caindo umas bengaladas ou pauladas à portuguesa.

Mas tudo era festa, era a política daquele tempo… Só nos botequins e barracas de comida havia luz dos gasómetros. No entanto, cantava-se e dançava-se pela noite fora.

No dia 14, pela manhã, os vareiros começavam a abandonar o arraial, mas chegavam já outras gentes. Eram dos lados de S. Pedro do Sul, Arouca, Sever do Vouga, S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e, como era natural, os povos de Vale de Cambra.

O dia passava depressa, a tarde ia caindo, o Sol descendo no horizonte, começava a apoderar-se de todos um certo saudosismo por a festa estar a acabar [9].

José Alves Pereira da Fonseca
Há no Distrito de Aveiro,
Castelões é freguesia,
Uma ermida consagrada
A Virgem Santa Maria.
Ao Nascente, ermo casal,
Ao Poente, tojo e mato,
Ao Norte, despenhadeiros,
Ao Sul, um solo ingrato.
Devotos lhe dão o nome
De Senhora da Saúde,
Os Seus milagres patenteiam
A sua santa virtude.
Catorze de Agosto,
Caminhos e veredas
Cobertos de gentes,
O povo às medas.
É perto do Val do Lobo,
No monte de Gestoso,
Tem vizinhos o Janardo,
O Arestal pantanoso.
Folguedos, cantares,
Violas, pandeiros,
Rebecas e gaitas
Lá tocam os romeiros.
Dali se descobrem montes,
Altas serras, penedias,
Choupanas e lugarejos
Das gentes das serranias.
Vão todos contentes,
Cantando e bailando,
Não cansam nem sentem
A testa suando.
Esguias torres se avistam
D’Aveiro, Porto, Figueira,
Salinas e pescarias
D’Espinho, Ovar, Torreira.
São moços e são velhos,
São mães e são filhas,
De todos os lados
Gente é às pilhas.
Vê-se o mar espreguiçado
Num vasto campo de areia,
Que, de alva, parece ao longe
De linho uma grande teia.
Diversos os trajes,
Coletes, vestidos,
Mil pregas nas salas,
Os lenços brunidos.
Vinhas muitas se descobrem,
Campinas, férteis ribeiras;
De Ceres louras searas,
De Baco verdes parreiras.
Chapéus à pastora,
Chapéus à vareira,
Mil fitas que leva
Aquela romeira
.
Oh, que vista tão formosa!
Mas que sítio tão tristonho!
Tudo quanto cerca a ermida
É feio, negro e medonho.
Também lá vão damas
Com seus cavaleiros,
Enfreiam ginetes,
Palafréns tardeiros.
Oh, que moça tão bela!
Que olhos que tem!
As faces são rosas,
Os lábios também.
Mas onde vão eles,
Da calma ao ardor?
Escuta canções
Lá diz o trovador:
A Senhora da Saúde
Bota fitas a voar,
Eu, que sou sua afilhada,
Algumas hei-de apanhar,
A Senhora da Saúde
Tem uma pipa de vinho,
Para dar aos seus romeiros
Que cansarem no caminho.
À Senhora da Saúde
Vamos hoje agradecer
Seu amor, sua ternura,
Seu valimento e poder.
Assim vão cantando
Romeiros, Romeiras,
Assim vão subindo
Ingremes costeiras.
O Val do Inferno
Lá deixamà direita,
E na Costa Boa
O suor espreita.
Avante, avante!
Gritam da frente –
Subamos, subamos
Viva a nossa gente!
Mas nessa devesa
Descansai agora,
Se o sol é fervente,
A fresca aí mora.
Curioso que vieste
De longe Romeiros ver,
Na Igreja de Castelões
Não deves permanecer.
Junta amigos, Companheiros,
Um deles charutos tem.
Oh, miséria! São só quatro!
Não digas isso a ninguém.
Surte a bolsa de cigarros,
A noute na serra é fria,
O fumar aquenta e serve,
Na falta de companhia.
Já tens a pança fartinha,
Comeste à regalada,
Bebeste maduro e fino,
Só te resta a cavalgada.
Lá vamos, lá vamos,
Cavalos montar,
Segura o estribo,
Toca a galopar.
Lá acima, lá acima,
A serra vizinha!
Não fiques atrás,
Pra frente caminha!
Não piques, não piques,
Tem dó do corcel,
Embora tu pagues
Justado aluguel.
Cheguemos, cheguemos!
Toca a desmontar!
Romeiros e festas
Vamos desfrutar.
Esta paragem solitária
Na maior parte do ano,
E hoje cidade imensa,
Toldada dum vasto pano.
São cobertas de Tendeiras,
São lojas de limonada,
São barracas dos Ourives,
Qual delas mais ad’reçada.
Fritadeiras são aos centos..
Que peixe fresco fabricam!
As Padeiras não têm conta,
Fruteiras atrás não ficam.
Setenta pipas de vinho,
Todas com boa torneira,
Os melões e melancias
Formavam grande trincheira.
O povo, que apinhoado
Ondeia à custa do transporte,
E qual seara de espigas,
Soprada do vento norte.
Nas estremas oblongas,
Como de África as c’ravanas,
Deitadas turbas se vêem,
Parda terra é suas camas.
Os homens trajam carapuças,
As mulheres, chapéus vareiros,
Raparigas, saias curtas,
São da Marinha os romeiros.
Mais adiante, lá se avistam
Mil mantéus, na cor alventos,
Parecem frades do armo,
Saindo ode seus conventos.
Oh, que rato figurão
Lá salta no arraial!
Botas, casaca “à fredica”,
Chapéu de general
Bordaduras esquisitas
Nos coletes recortados
Trajam galantes serranos,
São pastorinhos do gado.
Outros trazem jalecas
Grandes botões lavrados,
Que parecem as “carachas”
Dos nossos Comendadores.
Aqui merecem um conceito
Os vivos – Amor – talhados,
Que toucas, que balandraus!
As alvas são de enforcados.
Cristão, cristão! Não motejes
Desse ext’rior piedoso,
Que talvez um dia pagues
Esse teu dito jocoso.
Virgem, esposa e filha
De Jesus da Caridade,
Perdoai ao trovador
Tão descrita impiedade.
Olha em torno da capela
O fervor da devoção:
Penitentes e romeiros
De joelhos pelo chão.
E um pai que orfãozinhos
Seus filhos esteve a deixar,
Mas que a Virgem lhe valeu
Vem hoje a publicar.
E uma mão que quase órfā
Esteve de amor maternal,
Mas a Virgem lhe deu filhos,
Terminou sem grande mal.
E uma esposa que vinha,
Já se chamava aflita,
Hoje, se ainda é casada,
A Virgem seja bendita.
São amigos, são parentes,
São protegidos devotos,
Que à Senhora da Saúde
Vêm hoje cumprir votos.
Aquela.. Deixa alegre,
A esmola que prometeu,
Esta oferece um cordão de ouro
Que há muito não era seu.
Chega uma junta de bois,
Seus donos vêm na frente,
Que, chorando de alegria,
Fazem chorar toda a gente.
Augusta religião
De um Deus vivendo na Terra,
Os teus bens e os teus tesouros
São quantos o Céu encerra.
Descrido, deixa sair
Esse suspiro de amor,
Seja da Fé e da Esperança
O teu primeiro penhor.
E podes ainda chamar
A isto superstição.
Abre a alma à evidência,
Escuta a recta razão.
Todas as leis nos prescrevem
Da gratidão o dever:
Beijar a mão benfazeja
E doce, santo prazer.
O sol mergulhou,
A noute é chegada,
Os montes são sombras,
A Terra, anegrada.
Ouregos recolhe
Da igreja o pastor,
Das pias esmolas
E ele o redor.
Rapazes, comer
Àquele casal,
E logo voltemos
Ao grato arraial.
A ceia foi lauta
De ditos picantes,
E não admira,
Que são estudantes.
Redondos chapéus
Redondas raquetas,
Os trajes mudados,
Nem isso são petas.
Rapazes, cautela!
Respeito às romeiras!
Prudentes se mostram,
Não façam asneiras…
Um ponto marcado
Para reunir,
Os nomes trocados,
Nada de fugir!
Que grandes cajados
Que levam na mão
Que só um leva
A vara da jurisdição
E este o juiz,
Assim nomeado,
Lá buscam veredas,
Lá marcham ao fado.
Ao todo são sete
Pecados mortais.
Trovador, silêncio,
Não digas o mais.
A noute cai adiantada,
Talvez já vai amear,
No monte não há relógios
Nem se ouvem galos cantar.
As violas não descansam,
As modas são variadas:
“Cana verde”, “Luisinha”,
“Batetuco”, chulas cantadas.
Eis dois cabos de polícia
Procuram pelo tambor.
Dão no bombo uma pancada,
As ordens do regedor.
“Camaradas, por desgraça
Houve alguma novidade?”
Só respondem repetindo
O tambor com brevidade.
A tardança dos companheiros
Aquele sítio ajustado
Fazem impacientes,
Começa a dar cuidado.
Um de lá deixa o que dormia,
Tendo as mãos por cabeceira,
A demandar os que faltam
Vai correndo toda a feira.
Ai deles! Que triste encontro!
Um homem quase a morrer..
Expira, decerto! Expira!
Ninguém lhe pode valer!
Nos braços o tema esposa,
Viúva daqui a instantes.
Solta ais, derrama prantos…
Oh que cenas tão tocantes!
Ali estão autoridades,
Mil romeiros condoídos,
Todos carpem a desgraça,
Todos exalam gemidos.
Assassino, cruel monstro,
Que cometeste um “sacrilejo”
Se o lugar não era sagrado,
Sagrado era o festejo.
Esqueceste a caridade,
A Virgem Santa ultrajaste,
Romaria, festa e gozo
Sem dó tudo enlutaste.
Justiça do Céu e da Terra
Há-de este crime vingar.
Já no Céu perdeste a herança,
Da Terra te hás-de ocultar.
Se algum dia fores preso,
Cadafalso hás-de subir
E a tua cabeça e morte
De exemplo aos maus servir.
Sentenciou e, fugindo,
Deixou o lugar da dor.
Trazido tinha o peito
E a alma cheia de horror.
“Amigo, desperta,
Que temos desar
A festa tem luto,
Toca a retirar”.
Os olhos esfrega,
E, logo diz,
Que foi, que sucede,
Narração lhe diz.
Os nossos, os nossos
Aonde estarão?
Quiçá a dormir
Quietos serão.
Um salto, dois pulos,
Na casa entremos
Chegando à sala,
Ninguém encontremos.
Suspeitas e cuidados
Se multiplicam,
Já dois recolheram,
Mas três ainda ficam
A cama tem pulgas,
O sono é custoso.
Lá chega mais um,
Vem todo medroso.
Patranhas que conta
São dignas de riso:
Ou fala a criança,
Ou tem pouco siso.
Os dois, finalmente,
Chegaram nesta hora,
Findou a incerteza,
A dor se minora.
O tal moralista
Foi um dos traseiros,
Bocage no caso…
Sonetos brejeiros.
As camas são poucas
Para sete que são.
Deitar nesse banco,
Ou costas no chão.
E velho ditado
E muito verdadeiro
Que em cama apertada
Deitar primeiro.
Os olhos fechados..
Morfeu vem chegando,
Um sono pequeno,
Dormindo velando.
Acordas. Que vês?
É o alvor do dia,
São 15 de Agosto,
Da Virgem Maria.
A manha é lenta e fria,
O nevoeiro é cerado,
E fruta daquele monte,
Não deve ser estranhado.
À capela vão devotos
À santa missa assistir
E depois dizer adeus
Aos que houverem de partir.
Oh, que formigueiro de gente!
Uns vão, outros que vêm.
Dos sete, partiram todos,
Mas um lá fica também.
Tinha convite de há muito
Pra comer um belo jantar,
Com que o amigo reitor
Costuma amigos brindar.
Foi esta a razão somente
Por que deixou companheiros,
Que, e não ser motivo justo,
Era ele dos primeiros.
As horas são vagarosas,
Quem espera desespera.
Vamos ao café da tenda,
Se fosse chá, melhor era.
Os romeiros afluem,
Esmolas continuadas.
As missas decerto hoje
Não podem ser acabadas.
Oh, piedade cristã!
Oh, fervor da devoção!
Embora impios te odeiem,
Os teus frutos eternos são.
Mas… Ah, que a chuva começa!
Aonde tantos acoutar?
Não foi nada… O sol, que vence,
A chuva vem enxugar.
Onze horas dizem ser.
Da capela vêm saindo
Cruzes, guiões e tocheiras,
Devotos os vêm seguindo.
Vão ao Cruzeiro ade além
Romeiros de Ossela esperar,
São danças e costumes
Que os ade Ossela hão-de pagar.
O canto da ladainha
Ressoa nos vales vizinhos:
Augusta Virgem Maria,
Rogai por Vossos filhinhos.
São três padres ao altar,
Já começou a função.
No coro se canta a missa,
Majestoso cantochão.
À cadeira da Verdade
Subiu sábio orador.
Desabrochou o livro divino,
Fez no discurso uma flor.
Ao findar, a festa teve
Uma bela procissão:
Dois andores, os mais formosos,
Que encantam o coração.
Oh, que ternas despedidas!
Oh, que saudosos adeus!
Baga a baga corre o pranto,
Suspiros chegam aos céus.
Doce Mãe, Virgem Sagrada,
De Vossos filhos lembrai-vos,
Hoje, sempre e em toda a vida,
E todos abençoai-nos
Agora… Jantar!
Lá vão convidados,
Enquanto romeiros
Lá descem costados!
Ditinhos e segredos
Da noute passada,
Amigos, se contam,
Que grande risada!
Foi belo o jantar,
De peixe escolhido,
Assado, ensopado,
De calda, frigido.
As gordas tainhas,
As grossas enguias,
O bom bacalhau,
As trutas sadias.
Laranjas e doce
Abunda o “deser”,
Melões, melancias
Pra quantos houver.
Do vinho da Terra
Se bebem almudes,
Com vinho do Porto
Se fazem saúdes.
“Por fim que faremos?
Lá diz o reitor
Vamos sem demora
Ao fino licor.”
Que repentina mudança!
Está deserto o arraial!
Parece caso impossível!
Encanto, sonho ou sinal!
Lá marcham para S. Roque,
Outra grande romaria,
Que se faz sempre em seguida,
Da Virgem Santa Maria.
Foi o quanto se passou,
Nesta linda romaria.
Só dos Ouregos e esmolas
Não sei quanto renderia [1,3].
Marilena de Sousa

E ainda de Marilena de Sousa, em homenagem a Nossa
Senhora da Saúde, no dia quinze de Agosto de 1996:

Lá no Alto de Gestoso,
Para quem anda em viagem,
Não há nada mais formoso
Que a beleza da Paisagem.
Não há tintas nem pintor
Que se possam comparar
Ao que fez o Criador
Nem sequer aproximar.
Se se pudesse imitar
E transpô-la para a tela,
Gostaria de pintar
Essa paisagem tão bela!
Por entre a densa verdura,
Uma capela branquinha
E a imagem de candura
De tão amada Santinha.
Oh Senhora da Saúde!
No seu altar venerado
Nesta serra, por virtude
Serás sempre abençoada.
Nos dias de romaria
Todos rezam, todos cantam;
E geral esta alegria:
Todos brincam, todos dançam.
Estralejam os foguetes;
Das pipas corre bom vinho,
Os namorados contentes
Vão trocando o seu beijinho.
Dantes era às escondidas
Porque havia mais pudor
Disfarçavam em cantigas
O seu terno e puro Amor.
Lá se junta muito povo
E é grande a confusão
Não levam nada de novo;
Só a fé e a devoção.
São promessas e lembranças
Que oferecem à santinha
E é com muitas esperanças
Que rezam na capelinha.
Alguns levam seus farnéis
Outros lá comem nas tendas
Sandes, vinhos e pastéis
Também há por lá quem venda [10].
Trovas populares do século XVII

São conhecidas também algumas trovas populares do século XVII:

A Senhora da Saúde
O caminho pedras tem
Se não fossem seus milagres
Já lá não ia ninguém.
A Senhora da Saúde
Vê-la? Lá vai no andor
Viradinha para o mar
Louvado seja o Senhor.
A Senhora da Saúde
No alto de Castelões
Donde ela está bem vê
No mar as embarcações.
A Senhora da Saúde
Deita fitas a voar
Brancas e amarelas
Todas vão cair ao mar.
A Senhora da Saúde
Tem um filho serrador
Para serrar a madeira
Para o altar do senhor.
A Senhora da Saúde
Vê-la? Está no altinho
Quer chova quer faça sol
Sempre lá corre um ventinho.
A Senhora da Saúde
P’ró ano lá hei-de eu ir
Ou solteira ou casada
Ou “creada” de servir.
A Senhora da Saúde
Tem um sobreiro à porta
Dai saúde à minha gente
Que do sobreiro não m’importa.