Cabeças de sardinha e pouco mais (histórias com gente dentro)

Cabeças de sardinha e pouco mais (histórias com gente dentro)

Foi num dia de Julho. Os dias de escola tinham terminado. Minha mãe, incumbiu-me da tarefa de levar o almoço ao meu irmão Mário, que trabalhava na carpintaria do Almeida e Freitas.

Depois do “responso”, do que devia ou não fazer, ir pelo caminho do Com-Adro, cuidado com os carros, sempre pela “beirinha” da estrada, levar a cesta direitinha, para não entornar a sopa, perdão, o caldo, e lá vou eu.

Desci pela calçado do Cortes, que leva ao lavadouro do Com-Adro, seguindo pelo carreiro que ladeava a levada que vinha dos Valdantes e num ápice, estou na Ponte da Gandra.

Compenetrado na tarefa, rapidamente cheguei ao local, onde devia esperar a chegada do meu irmão, na escadaria do “palacete” (hoje em obras) ao lado da loja do “Bom Dia”.

Como ainda faltava algum tempo, decidi colocar a mesa, pano na escada, tacho e panela do caldo, pão colher e garfo em cima do mesmo.

Sentei-me no degrau em baixo, mas o tédio, começou a fazer o seu trabalho:

– E se fosses ver o ferrador?, questionava o “diabinho” que me atormentava?

– Não, não vás, dizia-me o “anjinho”, o Mário, está quase a chegar e depois não te encontra.

Não é difícil adivinhar, quem foi que venceu. Como é evidente nestas situações e idades, foi o “diabinho”.

Levantei-me e atravessei a estrada, desci por um carreiro, que havia em direcção aos campos (onde hoje se situa a Central de Camionagem).

Distraído com as ferramentas e a forja do ferrador, nunca mais me lembrei das horas.

Quando dei por mim, já ouvia o roncar das motorizadas, dos trabalhadores, que iam almoçar a casa.

Deitei a correr, chegado ao citado local, onde estava a mesa posta. Encontrei um espectáculo, que até hoje, não deixa de me atormentar.

Um cão de porte médio, que passava pelo local, farejando o cheiro das sardinhas, tinha-se antecipado, comendo com sofreguidão o almoço destinado ao meu irmão.

O arroz, estava intacto, contudo, das sardinhas (pequeninas) restava pouco ou quase nada, duas ou três inteiras, uns rabos e outras tantas cabeças. E agora, o que é que eu faço?

Questionava-me, digo, não digo… Mais uma vez, o “diabinho”, levou a melhor sobre o “anjinho”.

– Não, não digo! Senão, quando chegar a casa, levo coça.

Uma ajeitada nos restos, junto as cabeças, aos rabos ainda existentes e estava completo o “ramalhete”.

Quando o meu irmão chegou, ou não deu por nada, ou pensou, que foram estas as quantidades que minha mãe mandou.

E foi assim, que me safei (pensava eu). Chegado a casa depois do trabalho, o meu irmão pergunta:

– Ó mãe, quantas sardinhas é que mandou hoje para o jantar?

– Mandei perto de uma dúzia, responde ela, porquê?

– Porquê? Só lá estavam duas ou três inteiras e algumas cabeças.

Nesse dia, um pouco mais tarde, quando cheguei da “gandaia”, a minha mãe, questiona-me sobre o sucedido.

– Foste tu que comeste as sardinhas, que eram para o Marito? Se foste, não mintas, que ninguém te faz mal, (eu, é que não arrisquei).

– Sim, mãe! Fui eu, estava com fome e comi duas ou três, já não me lembro.

– Está bem, desta vez passa, mas não tornes a fazer o mesmo, pois quem trabalha, precisa de comer.

Já me safei (mais uma vez), pensei eu, todo lampeiro.

Só passados mais de cinquenta anos, numa reunião familiar, com todos os irmãos já adultos, é que eu contei a verdade, por detrás do arroz com cabeças de sardinhas (pequeninas), alguns rabos e umas poucas inteiras.

O certo e sabido, é que o meu irmão Mário, encheu a barriga, com os restos que o cão deixou e até hoje, não se queixou.

Lordelo, 05/07/2021

Aventino Monteiro (Latoeiro, fazedor de latas)