Linho: uma vida de trabalho em procura da beleza

A festa do linho

por
Artur Jorge Almeida
Maria Clara de Paiva Vide Marques

A beleza dos trabalhos em linho oculta todo um trabalho de grande complexidade que lhe está na origem.

Quando contemplamos um pano de linho, não fazemos ideia de todo o trabalho que foi necessário efectuar para o conseguir, desde a sementeira à obtenção do tecido.

O linho maioritariamente cultivado na zona de Vale de Cambra é o linho galego, também conhecido por linho de Verão, semeado nos fins de Abril ou Maio.

Sendo uma planta delicada requer muitos cuidados, por isso lhe estão reservados os melhores terrenos.

A terra é muito bem preparada e limpa, lavrada pelo agricultor com bois e charrua, que após este trabalho, semeava o linho a lanço ou, mais raramente com o semeador, muitas vezes, entre o milho verdeal, que embora não se desenvolvesse muito no linhar, crescia bem após a colheita.

Depois de lançada a semente, tinha que se esgadanhar a terra com um ancinho para que a mesma ficasse ao delaço e abriam-se os regos, através dos quais o linho irá ser regado.

O seu tempo de crescimento é acompanhado atentamente pois disso depende a boa qualidade da fibra.

Ao longo desse tempo, tem de ser regado várias vezes com regularidade e abundância, normalmente fora das horas de muito calor, isto é, pela manhã ou ao final da tarde, através dos regos abertos na altura da sementeira, pois o linho nunca é farto de água.

Se o tempo está muito quente deve regar-se dia sim dia não.

Este cuidado com a rega é para evitar a acama e o desenraizar da planta.

Outro trabalho também importante durante esta fase de crescimento é a monda, através da qual se eliminam as ervas daninhas, em especial, a gorga, que atacava bastante a planta e impedia o seu crescimento.

O linho é uma planta que deita uma flor azul dentro da qual nasce a baganha também designada popularmente por baganhão.

* Os autores agradecem a colaboração de Ana Cláudia Alves e Célia Almeida Martins, estagiárias do Museu Municipal de Vale de Cambra

* Queremos também agradecer a Adélia da Conceição Carvalho, que nos cantou a música “Ó José da Aldeia” e “Doba Dobadoira Doba”, a Teresa Matos, a quem devemos as canções, “Ó José da Aldeia”, “Vós chamais-me moreninha” e “Doba Dobadoira Doba” e a Emília Tavares Sousa, que nos cantou a música “Doba Dobadoira Doba”

* Um agradecimento também a Manuel Joaquim Rodrigues Almeida, a quem se deve a música de todas as canções

Quando as pétalas da flor caem, a baganha começa a desenvolver-se.

Dentro dela, está a semente, a linhaça, que vai ser guardada para semear no ano seguinte.

Ao trabalho de produção do linho estavam ligados homens e mulheres, cabendo a cada um tarefas específicas.

A primeira parte dos trabalhos, da sementeira à maçagem, pertenciam ao homem, com excepção da arrancada.

À mulher estava destinada a transformação do linho em fio e a tecelagem.

No entanto, pelo carinho que as mulheres punham no seu linhar eram elas quem muitas vezes o mondavam, acompanhando este trabalho com cantigas populares, uma das quais aqui reproduzimos.

Vós chamais-me moreninha

I
Vós chamais-me moreninha (bis)
Isto é do pó do linho (bis)
Já me vereis ao Domingo (bis)
Como flores do rosmaninho (bis)

II
O meu amor não é este (bis)
Não este nem o quero (bis)
O meu tem olhos pretos (bis)
O teu tem-nos amarelos (bis)

III
Tu dizes que me quer’s muito (bis)
Esse teu querer é engano (bis)
Cortais pela minha vida (bis)
Como a tesoura no pano (bis)
(Pauta musical no final)

Procedia-se à arrancada do linho, em finais de Junho, por altura do S. Pedro ou por vezes em Agosto, pois a colheita deve ser feita um pouco antes do amadurecimento completo da planta quando parte das hastes começam e ficar amareladas.

O linho colhia-se pela raiz para se aproveitar todo o comprimento do caule e sempre para o lado que estava tombado e de seguida colocava-se em pequenos molhos, as manadas, com as pontas todas viradas para o mesmo lado.

Durante a arrancada estão as mulheres no campo a arrancar o linho e a levá-lo, em manadas, para a eira para ser ripado.

O ripanço, tarefa reservada aos homens, é executado no ripo, aqui na zona geralmente montado sobre o carro de bois.

Os homens, colocados um de cada lado do ripo, fazem passar as manadas pelos dentes do mesmo de forma a separar-lhes a baganha.

Neste trabalho, são auxiliados pelas mulheres que além de lhes chegarem as manadas, as colocam novamente em molhos depois de ripadas.

Nos molhos de linho era usual meter-se um ramo de sabugueiro, para que não se estragasse.

As baganhas ficavam na eira a secar até sair a linhaça, que para além de se guardar para ser semeada no ano seguinte tem outro tipo de aplicações, nomeadamente ao nível da medicina popular.

Também a baganha era aproveitada, já sem a linhaça, para encher as almofadas e travesseiros.

Depois de ripado e posto em molhos é levado para alagar.

Os trabalhos de arrancar, ripar e alagar o linho são normalmente executados no mesmo dia.

E, era já durante a arrancada que as festas e bailaricos que desde sempre estiveram ligados ao trabalho do linho tinham início.

Durante a arrancada as mulheres acompanhavam o seu trabalho com gracejos e cantigas, de que deixamos como exemplo, uma das mais tradicionais canções ligadas ao linho.

Ó José da Aldeia

Eu hei-de ir ao teu linhar
Que o teu linhar tudo tem
Tem gorga e saramago
E peceguelo também

O Tomé Rebelo
Anda na arrancada
Com uma meia rota
E a outra esfarrapada

Ó José, José
Ó José da aldeia
Já que me prendeste
Leva-me à cadeia

Leva-me à cadeia
Leva-me à prisão
Ó José, José
Do meu coração

Ó José, José
Vem ao meu linhar
Para eu contigo
Um tombinho dar

(Pauta musical no final)

A arrancada e os trabalhos subsequentes eram um momento festivo, pretexto para inúmeras brincadeiras, bailaricos e namoricos entre rapazes e raparigas.

Segundo apuramos uma das “borgas” mais comuns durante a arrancada e o ripanço consistia em colocar-se uma bandeira de milho no campo das arrancadeiras e outra na eira dos ripadores, bem guardadas pelo respectivo grupo de rapazes e raparigas para não serem roubadas.

Por vezes, acontecia que uns e outros tentavam tirar ao adversário a dita bandeira e, na sua defesa aconteciam as tombadelas no campo e na eira.

Os bailaricos sucediam-se muitas vezes durante os vários trabalhos do linho.

Por isso, acontecia por vezes existirem músicas que se cantavam e dançavam, por exemplo durante a arrancada e a espadelada, mas que também podiam ser apenas cantadas pelas mulheres quando fiavam ou dobavam o seu linho.

Linho: uma vida de trabalho em procura da beleza
Dobadoira

Doba dobadoira doba

De dia velhas à porta
De noite cães a ladrar
De dia velhas à porta
De noite cães a ladrar

Era dia mal se via
A velha à porta a fiar
Era dia mal se via
A velha à porta a fiar

Doba, doba dobadoira doba
Não lhe impeças a meada
Doba, doba dobadoira doba
Não lhe impeças a meada
O novelo é pequeno
Cabe numa mão cerrada
O novelo é pequeno
Cabe numa mão cerrada

Cabe numa mão cerrada
Cabe numa mão aberta
Vai-se um amor e vem outro
Não há verdade mais certa
Vai-se um amor e vem outro
Não há verdade mais certa

(Pauta musical no final)

Como já acima referenciamos, o linho depois de ripado vai alagar, operação que se designa também por curtimenta, cuja finalidade é facilitar a separação das partes fibrosas das lenhosas que apodrecem.

Os molhos, postos em água corrente ou parada, fixados por pedras ou paus, para não virem à superfície, ficam submersos entre uma a três semanas.

O tempo de curtimenta do linho não é sempre igual.

Quanto mais verde está o linho menos tempo necessita de água, portanto, quanto mais maduro mais tempo aí permanece.

A duração depende, também, da temperatura da água, quanto mais quente menos tempo precisa de ficar submerso.

Passado o prazo, o linho era retirado, lavado e estendido a secar num campo ou lameiro.

Para que o linho fique bem seco tem que ter tantos dias de tendal como de lago.

Depois apanha-se e leva-se para a eira onde, às carreiras, é escolhido para se separarem as ervas fracas do linho e malhado com o mangual para se completar a limpeza.

De seguida era novamente posto em molhos, desta vez maiores para ser maçado.

O linho podia ser maçado com o maço ou ir para o engenho.

Esta operação de maçagem serve para separar a parte lenhosa das fibras têxteis, as matérias mais importantes para a tecelagem: os tomentos, a estopa e o linho.

Com a proliferação dos engenhos movidos a água, os mais comuns aqui na região, a trituração manual com o uso do maço foi caindo em desuso.

O engenho partia o pau ao linho até ficar sem arestas.

No engenho, o linho entrava num tambor dentado por dentro e por fora, onde era triturado, ficando em pasta.

Após este trabalho era levado para casa, muito bem limpo, embrulhado num lençol.

Nesta altura as mulheres faziam as estrigas, pequenas mão-cheias de linho, prontas a espadelar.

A espadelada inicia o trabalho do linho quase exclusivamente reservado às mulheres.

Normalmente feito em grupo ao serão, a ele estão ligados alguns dos momentos mais característicos da festa do linho.

Durante a sua execução os homens acompanham com os seus instrumentos musicais, as cantigas que as mulheres vão entoando em coro a várias vozes.

Os bailaricos, as brincadeiras, tais como a da maçã escondida no cortiço ou a visita dos serandeiros faziam também parte deste momento festivo.

No cortiço, usando a espadela, o linho é espadelado para eliminar as palhas fragmentadas deixadas pela maçagem e extrair os tomentos.

Com uma mão segurava-se o linho, e com a outra batia-se com a espadela, ao alto, contra o cortiço.

A fibra mais grossa, os tomentos, cai ao chão, na mão ficam o linho e a estopa.

De seguida, já limpas, as estrigas vão ser assedadas.

A assedagem, feita no sedeiro, separa as fibras longas, o linho, das mais curtas e grossas, a estopa.

O sedeiro é um pequeno instrumento com muitos dentes, nos quais fica a estopa, enquanto o linho fica na mão.

O linho depois de sair do sedeiro torce-se, dobra-se a meio, formando pequenas estrigas, que vão ser agrupadas em molhos.

Cada molho, chamado afusal, tem doze estrigas, a que se junta uma décima terceira que serve para o atar.

Quanto à estopa depois de sair do sedeiro era limpa e colocada dentro de um crivo para ser enrolada, formando os armos, também compostos por doze estrigas.

Tanto os afusais como os armos vão ser guardados em lençóis até serem fiados.

A fiação, consiste na transformação do linho em fio e é normalmente no fim da época das desfolhadas e das vindimas que ela tem início.

Fiam-se os tomentos, a estopa e o linho.

Os tomentos e a estopa eram fiados pelas moças menos experientes, enquanto que o linho era fiado pelas mãos mais hábeis, das mulheres mais experientes.

O linho era fiado no Inverno, à lareira.

Como diz o ditado:
Pelo Santo Aleixo minha roca deixo.
Pelo São Tiago torna cá diabo
.

As mulheres fiavam com a roca e o fuso e usavam muitas das vezes um cinto largo para segurarem a roca na cinta facilitando assim a fiação.

O linho em fio, as maçarocas, são passadas para o sarilho e transformadas em meadas.

O costal grande era o fio posto por dentro da meada, para que se não desmanchasse e para colocar nas canas.

O costal pequeno era feito no sarilho e é o princípio da meada, quando vai para a dobadoura.

No princípio da Primavera iniciam-se os trabalhos de branqueamento do linho.

No processo de branqueamento, normalmente as meadas eram levadas para o lavadouro, onde, depois de molhadas, eram batidas com um maço.

Na cozinha, em panelas de ferro, as meadas eram cozidas em água e cinza.

Voltavam ao lavadouro para desemborralhar.

Depois de ter sido tirada a cinza, as meadas vão para o tendal, em canas, para secar. À noite eram recolhidas.

No dia seguinte voltavam-se a estender, um dia para um lado e, no outro dia para o outro lado.

Enquanto coravam, as meadas não podiam secar, tinham que ser regularmente molhadas.

De seguida, são submetidas a uma barrela, no barreleiro, onde são dispostas às camadas envolvidas em água, cinza e sabão e cobertas com um lençol.

Sobre ele, peneirava-se cinza.

Também eram usadas, entre outras substâncias, as pernas de pisco-ervas com tronco vermelho que ajudavam a branquear as meadas.

Durante a barrela era colocado colmo no fundo do cortiço, para não arder e para dar cor.

Na primeira barrela usava-se água mais que morna, e nas seguintes a água era cada vez mais quente.

Este trabalho repete-se durante três dias.

Terminada a barrela as meadas são retiradas do barreleiro, lavadas com sabão e postas a corar ao sol no tendal, havendo o cuidado de nunca as deixar secar, pelo que eram molhadas ou borrifadas com o vasculho, pequeno ramo de arbustos ou com um pequeno ramo de gilbardeira.

Esta operação repete-se mais ou menos vezes conforme a tonalidade de branco pretendida.

No final do processo de branqueamento as meadas são passadas a novelos por meio da dobadoura.

Destes novelos colocados no urdidor, saem os fios que, passando pela espadilha preparam a urdidura para a teia, que posteriormente é retirada das urdideiras e colocada no tear.

A mulher, para urdir, tem normalmente uma série de pequenos segredos.

Assim, para saber o comprimento da teia, vai marcando distâncias, assinaladas nos fios com uma tonalidade verde que obtém esfregando uma couve nos prumos dos quatro cantos.

Estas marcas, a que dão aqui na região o nome de ramos, permitem que posteriormente, à medida que vai tecendo, a tecedeira se aperceba do trabalho já executado e, em consequência do que ainda falta executar.

Também para não se confundir a cruz do tear com a cruz dos cadilhos, há o cuidado de as atar com fios de cor diferente, para se distinguirem quando são colocadas no tear.

Finalmente no tear, para se obter o tecido, faz-se a trama.

O fio destinado à trama é enrolado nas canelas, através do caneleiro.

Estas, são colocadas na lançadeira que, projectada através da cala da urdidura, ora num sentido ora no outro, deixa a cada passagem o fio essencial à formação do tecido.

Os panos tecidos pelas tecedeiras podiam ter texturas e características diferentes, conforme a tecedeira tece os tomentos, a estopa ou o linho, que tinham também destinos diferentes, mais grosseiro dos tecidos obtidos.

Os tomentos, utilizavam-se nas actividades das casas agrícolas, servindo para sacos, colchões que se enchiam com colmo e panos diversos, bem como certas peças de vestuário, entre elas camisas, calças e casaco spara homem e saias e aventais para as mulheres.

A estopa, um tecido menos grosso e áspero, era usada igualmente no vestuário masculino e feminino, em especial no traje de trabalho e em peças de uso caseiro, tais como toalhas, guardanapos, panos, sacas de pão e roupas de cama.

No traje de domingo também se usava o pano de estopa nas peças do vestuário que ficavam escondidas pelo vestuário de cima tal como os saiotes e as fraldas das camisas.

Quanto ao linho, o pano mais fino que se tece estava guardado para as peças mais delicadas, normalmente utilizadas em ocasiões especiais, como se pode ver no uso que dele se faz para a confecção litúrgica, tais como toalhas de altar, de alfaias religiosas, paramentos, nomeadamente albas, sanguíneos, corporais, sobrepelizes, amictos e as vestes das imagens.

Em linho eram também a maior parte das peças do designado enxoval, do vestuário, aos panos de mesa, de cama, cobrindo outras actividades caseiras bem como os panos que faziam parte dos rituais e festividades ligados à vida dos homens, do nascimento – as toalhas de baptismo, à morte – os lençóis mortalhas.

As peças do enxoval, como lençóis, toalhas ou guardanapos, entre outras, depois de tecidos, eram bordados por hábeis bordadeiras que existiam na zona, dando ao linho um aspecto gracioso e de muito valor.

Se não eram bordados, aplicavam-se-lhes rendas feitas também nesta zona.

Mas, a utilização do linho, não se esgotava na produção de tecidos.

Conhecidas que são as propriedades terapêuticas da linhaça, nomeadamente o óleo e a mucilagem, pelas suas qualidades emolientes é natural que ela tivesse uma utilização bastante divulgada, nomeadamente sob a forma de infusões ou decocções (encontramos, em inquéritos, a referência ao chá de linhaça), bebida diurética, usada nas afecções de bexiga, ou mesmo sob a forma de clisteres no tratamento de disenterias e diarreias.

As cataplasmas obtidas a partir de farinha de linhaça, as famosas papas de linhaça, eram usadas no tratamento de inflamações internas e mesmo externas.

Eram aplicadas a quente, tão quente quanto o paciente pudesse aguentar.

O próprio linho tinha também o seu papel na medicina popular e nas crenças.

Para além da sua utilização em ligaduras, encontramos um remédio caseiro para os ferimentos em que se usavam os fios de linho.

Constava de uma colher de mel, gema de ovo e erva leitosa.

Depois de tudo bem batido, arranjavam-se uns fios de linho que se colocavam em cima do ferimento.

Passado algum tempo, retiravam-se os fios de linho e lavava-se a ferida com água fervida e borato.

Também a estopa tinha aplicações nesta área, usando-se para talhar as bichas (lombrigas).

Para esse efeito usava-se uma estopa e um carvão e dizia-se a seguinte reza:

Talho-te as bichas
Bichas malditas, amaldiçoadas
No inferno apresentadas
A boca delas seja seca
Como esta estopa
O coração como este carvão
O coração como este carvão
Com o poder de Deus e
Da Virgem Maria
Tudo o que eu talho
Tenha valido
Pai Nosso e Avé-Maria

Linho: uma vida de trabalho em procura da beleza