Gavetas das cores dos dias

Gavetas das cores dos dias
Gavetas das cores dos dias

Gavetas das cores dos dias

POESIA DA LEVEZA E DA FRESCURA

Há vários anos já que venho chamando a atenção dos amantes da literatura, da arte, das coisas belas da vida para a poesia de Manuela Correia.

Não tenho, porém, a pretensão de ser ouvido, mas também não tenho ficado à espera que, por qualquer sortilégio, o público se digne reparar naquilo que, a meu ver, merece a pena ser realçado.

Este novo livro da autora de Poemas Tri Angulares e de outros sabores poéticos que vimos degustando desde as suas primícias, marcadas por uma poética que muito nos fazia ressaborear a de David Mourão-Ferreira, constitui uma inflexão, já antes tentada, para, de uma forma ainda mais adulta, se libertar da sombra protetora do seu mestre maior.

A beleza poética com que sempre nos surpreendeu continua a morar nestas páginas, mas, volvidos alguns anos desde a anterior publicação, os poemas assumem agora outra mancha gráfica, outra forma poética, e os temas versados tomaram alguns caminhos novos.

Embora haja quem ache abusivo evidenciar os laços que ligam a escrita ao braço que a produz, quem segue de perto a vida desta autora dificilmente conseguirá dissociar a sua obra da sua biografia, ou, se preferirem, o seu espírito do seu corpo.

A partir dos versos que aqui encontramos parece-nos possível reunir toda uma eloquente sintomatologia dos seus males físicos ou, pelo menos, indícios muito manifestos de que esse corpo nem sempre colabora como seria de esperar e que o espírito procura a liberdade que ele não sabe oferecer-lhe.

Surgem aqui ou ali um inesperada bradicardia, estímulos sensoriais que se transformam em pontos de dor ou de desconforto: «avanço os braços tão sem força / ergo-me com um ranger nas costas / como se carregassem cem anos de pesadelos».

Esse corpo que, inopinada e frequentemente, lhe tolhe os movimentos leva o sujeito poético a sair para a rua «à procura da [sua] liberdade».

O espírito esforça-se por opor robustez a esta fragilidade corpórea e promete não se deixar vence pela «deriva» e fazer da sua dona alguém que assenta «com firmeza os pés na terra» e assume compromissos de lutadora e de cidadã interveniente.

O poema em que esta posição se expressa intitula-se «Dos ombros para cima» e essa é a afirmação de uma vontade contrariada, afinal a confissão da fragilidade, já admitida no poema “Das coisas”, de quem, vendo-se demasiada pequena para ir à ação, sente como que o remorso de ter de optar pelo «mais cómodo» – assistir em vez de intervir.

Dá a impressão de que o eu poético se sente desvanecer, que aquele peso-pluma corpóreo da autora ensaia transformar-se em nuvem, como propõe aquele poema de José Gomes Ferreira quando diz que «devia morrer-se de outra maneira».

Aliás, essa transformação, que seria uma espécie de comunhão com todos os seres, com a Natureza, com o Indizível, é antecipada de certa forma pelo que se descreve no belíssimo poema “Entre sol”:

O nascer do sol já cresceu dois palmos
respirar a quietude transparente do ar
abrir os braços como ramos dengosos
e aclarar os sentidos até ao incólume
para
afagar o licor da flora entrar em nós
pela fechadura do lado esquerdo
fazer do dia o início de pontes de
mãos dadas alcançar no peito rendas
de espuma
voar no eflúvio das borboletas apostar
somente no jogo da verdade aprender
de cor a cor da música saber de um
poema ainda sem ser
entrar na longa planície da beleza

Trata-se aqui de uma espécie de desprendimento ascético, um arrebatamento extático ou, pelo menos, o seu anseio, ideia para o qual confluem inúmeros termos e expressões desta e das demais estrofes que, de algum modo, remetem para a isotopiada delicadeza e do excelso: sumaúma, o azul do céu, a quietude transparente do ar, as pontes, as rendas de espuma, o voo, o eflúvio das borboletas, a música … Enfim, a leveza.

Sim, a leveza que Italo Calvino considerou a primeira, talvez a mais importante, das suas Seis Propostas para o Novo Milénio, que escreveu para um ciclo de conferências a realizar na Universidade de Harvard, Cambridge, no Massachussets.

A leveza calviniana seria um dos atributos ou valores essenciais da Literatura e definir-se-ia como uma força impulsionadora, capaz de subtrair peso aos rigores do Mundo. Seria uma espécie de estratégia para se adquirir uma nova perspectiva das coisas espinhosas da vida, um contributo para a dissolução da espessura ou “compactidade” do mundo. O próprio Calvino ter-se-ia preocupado, nos seus trabalhos, em «subtrair peso ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades e, sobretudo, à estrutura do conto e da linguagem».

Leveza não significa, no contexto do que pretende o romancista italiano, desresponsabilização, frivolidade ou fuga ao real. E explica: «Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra óptica, outra lógica e outros métodos de conhecimento e de análise». Segundo ele, a própria ciência moderna assenta em entidades delicadíssimas, como o DNA, os neurónios, os quarks, os neutrinos, os bits da informática, a qual se fundamenta muito mais no software do que no hardware.

A sensação de leveza que ele preconiza se deva transmitir ao leitor está bem presente em grande parte dos poemas deste livro. O poema “Música”, por exemplo, é um exercício habilidoso para aliviar todas as coisas do seu peso. Nele se espalham flores de algodão, penas, plumas, notas musicais. Perpassa a brisa pelo poema “E …”, onde se propões que «fosse um fumo branco / a certidão da morte».

Não será por acaso (mas há felicíssimos acasos) que um destes textos de Manuela Correia exibe o título de “Poema da leveza”, no qual «são interditos os excessos / e poucas são as coisas permitidas» e em que as palavras parecem ter sido todas escolhidas uma a uma para tudo suavizar, serenar, atenuar, silenciar, como se tudo se transformasse em mera «espuma que um bote traz consigo / para sustentar a leveza do poema».

No poema “Surdina”, «o amor foi simples / mas cavado até ao limite». No entanto, pouco mais se podia ver, no penumbroso quarto, do que os corpos silenciosos refletidos no espelhos mais não se ouvia do que a «surdina da chuva» e a crepitação dos gestos.

A pesar da sua exiguidade, o poema “Poder” é um modelo enormemente persuasivo desta arte de retirar espessura e gravidade através de uma espécie de “eufemismização” que proporciona o próprio levitar:

Poder chorar de dia
como quem canta
e poder gritar de noite
como quem sonha
poder descobrir um roteiro
de margens como brisa
e poder construir
um barco como asas
poder perder o medo
como quem desmaia
e poder ganhar do céu
o outro lado

Outras formas de leveza estão ainda escondidas nestas Gavetas. Surgem aqui ou ali certas notas de humor e ironia. No poema “Cama”, tudo dá a entender, desde o título e até quase ao fim, tratar-se de uma cena erótica, mas acaba por desembocar em algo inesperado num texto poético. Em “Acordo”, a construção de um novo hipermercado dá azo a algumas jocosas considerações. E em “Definitivamente, o sujeito poético ensina-nos como diluir o vazio, o tédio, o cansaço: ir jantar fora … no jardim da casa.

Finalmente, refira-se o poema “Exceto” que, em quase tudo, faz lembrar os versos de “À tarde” de Manuel Laranjeira, que temos a certeza, Manuela Correia leu e ouviu ler muitas vezes

A tarde lenta cai. E cai também
Uma melancolia venenosa,
Meu Deus! Que se não sabe de onde vem …

O poeta de Comigo alude à tristeza das coisas, à solidão desesperada em que todos vivem e fala de melancolia, mas de uma melancolia assoberbada por um modificador pouco complacente: “venenosa”.

Em Manuela Correia,  a melancolia é uma tristeza mais ténue, apenas nevoenta e os versos finais trazem consigo alguma esperança no mínimo a eventualidade de um amigo chegar, razão pela qual fica pelo menos uma lâmpada acesa cá fora. Como sabemos, para Laranjeira, essa seria uma hipótese que nem sequer seria de considerar.

Para Calvino, o humor e a melancolia são formas de leveza: «Como a melancolia é a tristeza que se torna leve, assim o humor é o cómico perdeu o peso corporal».

Procurar a leveza, segundo ele, é um modo de reagir ao peso de viver e uma literatura nela apoiada é uma literatura que reforça a sua função existencial. É assim que o sujeito poético encontra uma forma de sobrevivência, mesmo num mundo tão hostil.

Já vimos que, mercê dessas adversidades, o poema em Manuela Correia é habitado pelo sofrimento e pelo desencanto («as pétalas felizes do amor / são restos de penas e restolho»; «o que era já não há») e, em redor, crescem as deceções e preocupações pelo futuro de um país onde tudo parece desmoronar.

«Como foi possível deixarmos que isto voltasse a acontecer?» – interroga-se o sujeito poético, atento a tudo: aos salários encolhidos, às fábricas encerradas, às férias subtraídas, às promessas eleitorais traídas, às mulheres que «se desfazem para pagar contas e pôr comida na mesa», aos livros que ficam a ganhar traça nas livrarias, à impossibilidade de se ir mais longe ao lançamento de um livro de um poeta predileto. E, como se ouvisse os ecos do poema de Rafael Alberti («Que cantam os poetas andaluzes de agora?»), não deixa de elencar muitos outros problemas que enchem a «praça do noddo descontentamento»: o pão que falta, a emigração incentivada, os incêndios a vitimarem os heróicos soldados da paz, os «abutres» do poder, ocupados com o fausto nos seus corredores, a ficarem-se pelas desajeitadas condolências.

Tudo adquire visibilidade poética (outro dos valores calvinianos) com imagens bem imaginativas que servem como indícios da profunda crise que se atravessa: «o carteiro sem boas notícias a olhar o rio que passa / um cão latindo lancinante» ou «a vizinha a estender a roupa como se desfiasse um rosário de ossos».

«Olhai alto!», «Cantai alto!» grita-se no mesmo poema de Alberti, e é o que faz o(a) poeta, socorrendo-se, como dissemos, de toda a elevação própria da leveza, da imaginação, do sonho, do grito, do próprio silêncio, da reinvenção dos gestos de amor com os outros, com os amigos, com a natureza, com as rosas com quem dialoga. É a elevação da verdadeira poesia porque «as pessoas que respiram palavras / e delas fazem o pão e a casa até / no barco da incerteza se entendem».

Um dia, ouvimos Eugénio de Andrade falar da sua poesia e nunca esqueceremos que ele citou Goethe para escorar a sua maior preocupação ao escrever: «A leveza é a qualidade máxima a que um artista pode aspirar».

É por tudo isto que estas Gavetas que Manuela Correia abriu para o mundo, em vez do mofo que dimana de algo encerrado longo tempo, exalam a frescura da alfazema.

“Frescura” é um termo caro ao escritor, semiólogo e filósofo francês Roland Barthes. Opôs-lhe a noção de “fadiga”, referindo-se ao cansaço e ao desgaste provocados pelo estereótipo, aquilo a que também dá o nome de “discurso previsível”. O estereótipo, na etimologia grega, refere-se a um molde sólido, e é justamente a solidez, a espessura ou petrificação da linguagem e a repetição permanente do sentido que tornam insuportável aquilo a que ele chama “escrevinhação”.

A frescura é, pelo contrário, a linguagem da “escrita”, usa uma estratégia de subversão, apoia-se na “significância”, que é a recusa de uma única significação e é o sentido “sensualmente produzido”, nas raias do transe, não muito longe do delírio ou de uma certa paranoia. Já Teixeira de Pascoaes escrevia que «poeta quer dizer possesso».

Já aqui transcrevemos parte do poema “Entre sol”, que é talvez o que mais poderia ilustrar esta ideia de um poeta que se deixa possuir. Mas poderíamos citar muitos outros deste livro, em que é mais evidente essa girândola de significações que parecem ter sido produzidas nesse transe a que aludimos. Apenas mais um exemplo desta frescura centrada num discurso totalmente imprevisível de um dos poemas dedicados a várias personagens da sua história pessoal:

Guardei teu sol de dezembro e tua
chuva de março o teu anel saturnino
a tua tela predileta
o teu cheiro a aloendro escancarado
os oceanos que começam nos teus olhos
as tuas camisas o teu jasmim que
não regavas a tua madrugada onde
eu colocava organzas
as frases que não dizias mas pensavas
os teus livros abertos de paisagens
as tuas raízes de existir os teus frutos
de seres o teu copo de porto onde
afundavas segredos como navios

O poema prossegue neste tom de arrebatamento e o leitor pode concluir a sua leitura no corpo deste poemário, achando aí fácil incentivo para viajar para todos os outros textos, na certeza de que demandará um outro país encantado e encantatório que não o defraudará. A leveza e a frescura serão as principais responsáveis pelo fascínio da expedição.

Ficamos por aqui para não adiarmos mais essa jornada nem nem interferirmos mais no prazer que sabemos irão desfrutar. Não queremos parecer aqueles guias turísticos que se põem longamente a prometer o deleite para os olhos e para a alma e nunca mais encetam o passeio. Boa viagem!

Anthero Monteiro

S. Paio de Oleiros. 7 de Novembro 2013

Acordo a meio da noite com
a ação de despejo de uma chuva louca
e é como se não estivesse mais
em casa passa por mim um rio
entre margens tão irregulares
como as palavras que não digo

É cedo para a lamúria dos gatos vadios
ser real e para algumas mulheres acenderam
o fogo onde irão cozer o pão de cada dia
de cada dia e de cada noite depois
seguirão para outro turno a meio caminho
do centro da cidade e chove
alguns homens dormem o último sono
antes de entrarem nos quilómetros necessários
para edificar mais um hipermercado tão
premente como as brasas de uma nova
santa inquisição e chove
“é para ir ao encontro da população e dar-lhe
sorrisos” nem eles sabem como isso é importante
para as pessoas serem felizes

O vento começa a ser uma vassoura feita de
nervos e fica à vista o baldio onde se depositam
haveres inúteis e lembranças como feridas abertas
de onde nos vem esta adulterada herança

Agora o que tenho de ser meu são os meus
olhos fechados a ver Troia
o resto não entra mais na história

Eis o meu corpo nu
e prenhe de avidez
do dilúvio que trarás contigo

Ao almoço somos todos
quando um faz recusa não
é tido em conta
mas às vezes tem que ser
nada sabemos do local
em que está

mami tens que comer

Eu sou divisível
por meu nome próprio
por irmã empregada há
dias em que sou
filha outros não tenho
identidade

mami tens que comer

Faço da tua cama um berço
estamos próximas
tão juntas
mãe
pego-te nas mãos tão perto

e tu tão longe

Lá onde tudo é calado como um fosso na memória
sobrando apenas um rasgo com os sorrisos de infância
e eu onde estava onde acabava o quarto da avó onde
mas este quarto nunca acaba sempre principia
ou na soleira da porta a olhar o gato e os frutos

De súbito sou adulta mas ainda trepo às árvores
e deito-me no regato onde me fundo com a água
até ao grande suspiro de tornar à infância
reencarno num pássaro de porte transitável
e voo raso em traçados oblíquos e voo
e na distância subo e circulo perto cada vez mais perto
do grande teto do céu

O vento estremece o que há de líquido no céu
e eu tremo também e caio não no quarto da avó
mas no corredor meio estreito do que fora a casa
e o meu interior dentro dela

Amarrota-se o sol e esquece-se do parapeito
onde eu bebia o leite diretamente da vaca
e eu já não posso acontecer nem nos filamentos
de alguns cabelos meus em reticências

Numa crise de asma
pretiro o oxigénio pelo sal
e a clorofila da tua boca

para David Mourão Ferreira (in memoriam)

Tantas são as ilhas que me acenam
e eu côncava e limitada me desdenho
por não ser uma jangada um barco um jato
para ter o rasgo de alcançá-las
eu vejo na interioridade das ilhas
tantas nomeações de adjetivos
tantas flexões verbais plenas e livres
e de um branco aberto sem desvios

E é no prazo em que cabe uma cidade
que me são as ilhas reveladas
mas o meu prazo ainda que seja ilíquido
é só um sombrio quarto de solstício
minha parte física é derme ou epiderme
a suster a debilidade do meu fundo interno
e entre ilhargas as ilhas se alastram
e cada vez mais o meu não ser as afasta

Eu queria poder
arrancar-me de mim
a plantar-me da ideia
que hoje me persegue
andar para trás
sempre em descida
amparada por uma brisa solar
até ao tempo quase zero

Aí todos os meus sentidos
estariam apenas
ainda à beira do nascer
Possivelmente só a pele
e umas décimas de carne
sentiriam algumas movimentações
e apenas de espaço e de sons

Suspiro a meio da noite mordo
o lábio inferior para abafar o
grito da varanda o cheiro dócil
das magnólias expande-se pelo
quarto roça-me as narinas acaricio-te
o peito o mesmo tecido de sempre
abres os olhos beijas-me os cabelos
mordo mais o lábio viro-me
toda para ti tomas-me nos braços
vestes-me a nudez do pescoço
e as tuas mãos vão de lado a lado
no meu corpo que se inclina pela
metade suspiro agora mais ofegante
respiras a espaços semi-abertos a
mão no joelho suspiras viro-me
grito ai e solto as mãos colas-me à
cama assaltas-me a perna esquerda
até se esvair a maldita cãibra

Agora que os meus olhos se cerram
como portadas de janelas
suspensas sinto as palavras cheias
de ternura vegetal mas eu não as
penso e nem quero pensá-las
porque elas podem ter razão e eu
não quero a razão das palavras quero
antes a razão das coisas o conteúdo
a raiz o modo verbal

Mas as coisas de que falo estão
tão intrinsecamente herméticas que
deve ser necessário possuir uma
qualquer chave de ciência para rasgar
o portal desse universo e eu que só
tenho a chave da porta de casa e não
me transporto em ciência alguma
como posso querer entrar nessa
dimensão eu tão diminuta

Retenho-me então a abrir os olhos
agora como portadas de janelas flexíveis
e a assistir apenas à visualidade das
coisas o que é indubitavelmente muito
menos desejável mas
categoricamente muito mais cómodo

para Joaquim Pessoa

Agora que me vêm extraindo parte do salário
tiraram-me uma possibilidade considerável
para comprar livros há bibliotecas de
ir ao teatro a minha cabeça sabe fazer os cenários
de contar com uma ou outra folga da cozinha
a brisa corre naturalmente atiça as brasas e
faço as refeições no terraço
roubaram-me o bem-estar de uns oito ou dez dias
de férias mas eu juro que não vou morrer
até novembro e acenderei um carreiro de fogueiras
para passear na neve alguns convívios
à noite com gente que se gosta o luar
nasce da mesma forma e ilumina até nos
trazer o rosto e o aroma desses amigos

Entretanto plantei roseiras e são corpos completos
com quem falo e acarinho os gestos
amarrotaram-me a versatilidade de o amor já
não estar à nossa espera temos que
reinventá-lo a cada instante e fazer
amor com o ser amado às vezes dói o
sol brilha do nada até depois do nada e o amor
tal como nós nas entranhas resiste entre contas
e coisas por contar baralharam-me os dias e
fizeram-me perder a apresentação do
livro de Joaquim Pessoa esfumou-se o
abraço olhos nos olhos ele tem um livro
para mim as pessoas que respiram as palavras
e delas fazem o pão e a casa até
no barco da incerteza se entendem
Tiraram-me a exatidão das cores da
bandeira nacional o vermelho não está de
mãos dadas com o rubro e o verde está a
desbotar como se já fora outono sobretudo
quando aberta ao contrário fora do pano
e dentro do ser o rubro está em riste o
sangue é testemunha e o verde vai levando
uma demão das folhas renovadas e dos
lápis de cera da infância

mas nunca hão-de tirar-me o sonho que
salta e viaja como os pássaros nem a cor
do meu grito ou do meu silêncio de liberdade

Está dito decidi que almoçávamos
fora estou cansada da casa dos seus
pertences e até de mim mesma suspeito
que estou outra vez com bradicardia e
isto enerva-me até à razão do nada

mas declaro que não é exatamente comigo
e aponto o dedo ao cão e ao primeiro
transeunte que avistar na rua cegam-me
os brilhos de facas que saem dos vidros das
janelas e range na minha melancolia o pó
das escadas das esperas inúteis e alguns
excessos de nada
abrir ou não abrir a varanda e mexer
em gavetas por causa de uma toalha é
mais complicado que resolver
teoremas de matemática

não me apetece estar em mim ou em
parte alguma vácuo tédio cansaço
o almoço o vento da madrugada inclinou
as flores do jardim as minhas rosas detesto
que mexam nas minhas
inteiramente rosas sou apenas eu que
a troco de alguns acúleos na pele pensar
no seu florescer isto é nada trato delas
até ao mais infinito pormenor

Chamam-me o vinho aberto exala o aroma
frutuoso que até Baco benzeria o almoço
está pronto os homens da casa levam os
últimos copos para a mesa já posta na
metade do jardim onde estava esta
toalha
Definitivamente almoçamos fora

Do céu azul desta cidade
brotam clarividentes manhãs
tão rentes a nós pequenas nuvens
brancas como as claras batidas
de quando faço um bolo
um sol de projeção firme com franjas
de primaveras decididas
flores entre o já ser e o porvir respiro e
inalo por todos os poros a prodigiosa
natureza que a minha retina consegue
divisar e manter em registo
aqui apetece no rio cachoeiras
de riso e na água um jogo de espelhos
e espreguiço-me na cadeira da esplanada
bebendo o mais vermelho pôr do sol

Estou numa viagem de três dias e um
deles destinado a ser feriado

Se estivesse em casa provavelmente
andava entre a cozinha e a dispensa
até que a mente relembrasse a procura
das mãos
num círculo inútil a manusear o
aspirador com o canto dos desafinados
ou a remexer roupas numa tontura
frenética entre a máquina de lavar o clima
e o ferro como se isso fosse indispensável
para alguém a começar por mim
lides comezinhas que até ocupam muito
mas preenchem muito pouco tira-se daqui
o verbo da cozinha gosto dele

Estou numa viagem de três dias e um
deles destinado a ser feriado

Hoje é o dia primeiro de maio e
apetecia-me escrever no grande muro
das lamentações e da história
as praças e ruas estão quase desertas

Passeio dos ombros para cima
como se o resto do corpo estivesse
depositado num sono mortal
sacudo o emaranhado desalinho dos
cabelos e um redemoinho estúpido
despenteia-me os pensamentos

e assim fico à deriva

Digo noite e multiplicam-se os pardais
em intensas revoadas com olhos de março
e desprendimento que não é sabido
por um qualquer ser humano
lembro uma gota de água e são torrentes
confusas de raivas náuseas revoltas
de um rio que nunca seca enquanto
este país estiver cada vez mais ontem
estiver cada vez mais tarde

não não fico à deriva

Digo sol do meio-dia e um rasto de
serpente contrai-me a nuca e aflige-me
o pescoço como se tivesse ilhós de um
fio de corda em curvas cicloides
penso branco e só teias e artimanhas muito
mais que nevoeiro vão a caminho da
proa onde uns ditos senhores inchados de
verborreia fazem discursos avulsos
pensando eles que falam para
crianças de chupeta zero bilhete de
identidade e idades com demência

Assento com firmeza os pés na terra e
a sós comigo assino o compromisso
de ir à próxima manifestação pacífica
e apartidária

E haver na areia
mais brisa que palavras
em que não fosse fugir de nós
a marca das peugadas
e haver no sol festejos
com círios de quermesses
e as ruínas do ser
que as ondas desfizessem
e haver só rugas de água
que a maresia exorta
E fosse um fumo branco
e certidão da morte

para a Gabriela

Elas
sonegaram o tempo e decretaram
a urgência da tarde
Suspenderam a casa a família e os cães
e rumaram fora dos lugares rotineiros
Palmilharam avenidas e ruas a espaços
largos e paragens ao acaso e a gosto
tiveram conversas de ontem sem delongas
acentuaram as de hoje e falaram dos filhos
(não fossem eles os seus amores maiores)
de coisas triviais e algumas invulgares
e íntimas entre sorrisos e sustenidos
Debruçaram-se na sacada da brisa cálida
e olhando-se mutuamente fizeram passadiços
de silêncio e abriram meias portas da
adolescência e até da infância tão distante
e de súbito tão perto

Elas
numa meia esplanada em cima da areia
calmamente fizeram uma refeição frugal
que lhes soube a um manjar de deuses
silabaram versos de um poema
e rapidamente distenderam a poesia
mar adentro até à acalmia das ondas
e a instantes a surpresa dos ouvidos
enrolados no marulhar do mar e no mais
doce do solstício do dia mais límpido
e mais longo do ano

Elas
empreenderam-se num abraço como se
não se vissem à quatrocentos dias e não
soubessem se voltariam a ver-se
Assistiram com a serenidade das gaivotas
à totalidade do pôr-do-sol (ah o pôr-do-sol
em Espinho!)
Entre o crescente do crepúsculo elevaram
um brinde para celebrar a amizade
e lentas regressaram a casa
Elas

Quando os pássaros reunidos
habitavam o ventre da encosta
as manhãs vestiam de prata
as pétalas felizes do amor
e os dias cabiam inteiros
nas pedras que espelhavam o céu
na música intermitente das águas
no desprendimento das asas

Agora as pedras rastejam
no silêncio apodrecido das águas
e os dias descaem a medo
nos ninhos estilhaçados
a encosta encolheu de aridez
e as pétalas felizes de amor
são restos de penas e restolho

Espraiar-me no baloiço tábua rasa
e os centímetros de sumaúma
no sentido certo do nascer do sol
ainda menino
deixar de fora as angústias sem teto
o lamiré das cinzas entre o fogo
as dúvidas do próximo futuro
e a tristeza sem nome
Absorver a substância da terra depois de
ser regada
o branco imaculado de um lençol de linho
estendido na relva
a paciência dos catos até à água
o azul do céu com pinceladas de fresco
de mais azul

O nascer do sol já cresceu dois palmos
respirar a quietude transparente do ar
abrir os braços como ramos dengosos
e aclarar os sentidos até ao incólume
para
afagar o licor da flora entrar em nós
pela fechadura do lado esquerdo
fazer do dia o início de pontes de
mãos dadas alcançar no peito rendas
de espuma
voar no eflúvio das borboletas apostar
somente no jogo da verdade aprender
de cor a cor da música saber de um
poema ainda sem ser
entrar na longa planície da beleza

O sol é adulto e eu embrulho-me com ele
com o vagar da paciência estática
e com traços de menina

Quando dizias que os meus olhos brilhavam
como dois diamantes
o meu pescoço era sempre a promessa
do acontecer
a minha boca sabia a um néctar único
as pontas dos meus seios eram rubis
a minha pele era mais macia que qualquer
veludo
as minhas coxas eram de seda pura
o meu sexo era o desabrochar de uma rosa

eu sentia as nuvens nas unhas

Agora é como se tudo fosse dia claro
o brilho dos meus olhos era a incidência
da luz do reflexo do espelho
o meu pescoço era um passaporte ilimitado
a minha boca sabia ao calor das veias
os dois rubis dos meus seios
eram os pingos do licor de amora
depositado por ti
a minha pele é apenas a minha pele
as minhas coxas são de carne
e a minha vagina é um orifício

eu sinto os pés na terra

Hoje mando-te dormir para o sofá
amanhã amanhã serei benevolente
eu mesma farei as tuas malas até
colocarei a prótese dentária que não
usas e mando-te àquela parte
ainda te levarei ao aeroporto ou
ao aerolisboa àquele que
preferires e espero que chegues
intacto àquela parte àquela parte
do mundo que mais gostes

Quem de nós resiste a um cair da tarde
a pique sem licença ou aviso
mistura-se em nós como farrapos em
dia de vento suão imperiosa ela atravessa
a cidade até aos encontros menos esbu-
galhados entra em nossa casa como se
nela morasse
um sol puído de ausência
espalha partículas de melancolia rou-
badas ao nevoeiro até aos objetos mais
íntimos os livros das mesas de
cabeceira as escovas dos dentes a
agenda do que não pode ser deslembrado
as lâmpadas apagadas até as lantejoulas
do tecido que morreu ontem à noite
e estava vivo hoje de manhã

não me perguntem o que não sei
uma tarde assim devia cair pelo
menos metade para cima e nunca antes
das sete da tarde exceto nos dias
em que nos deitamos de véspera e
desligamos com urgência todas as luzes
do mundo lá fora não nos interessa
depois as de casa menos a de fora pode
sempre aparecer um amigo

À beira de um incêndio
grita feito louco por mim
sou a urgência do teu calor

Ontem à noite rondaram a minha
porta
lobos ou homens senis sentia-os inspirar
o meu íntimo ar pelas fendas das
janelas
a luz do candeeiro do teto fragmentava-se
em pequenos feixes e vagos estilhaços
de onde tento reter alguns porque
posso precisar deles para ser feliz
ou mesmo para o não ser

os quadros e os retratos começam
a descer de nível e a escorrerem
pelas paredes
diminuo-me até à maior curvatura
e faço do sofá a antecâmara da
minha morte
temos que estar preparados

Os meus ouvidos acusam ruídos
só podem estar a esquartejar as
minhas glicínias o que não é sabido
pelas pessoas este sangue derramado
mais do que flores é nas minhas
glicínias
que mordo as saudades
da minha família mais íntima e dos
meus amigos verdadeiros

atravessa-me o cheiro de cachos
e cachos das minhas glicínias
diminuo-me até à posição fetal
devo morrer após o último suspiro
delas
temos que estar preparados

Guardei teu sol de dezembro e tua
chuva de março o teu anel saturnino
a tua tela predileta
o teu cheiro a aloendro escancarado
os oceanos que começam nos teus olhos
as tuas camisas o teu jasmim que
não regavas a tua madrugada onde
eu colocava organzas
as frases que não dizias mas pensavas
os teus livros abertos de paisagens
as tuas raízes de existir os teus frutos
de seres o teu copo de corpo onde
afundavas segredos como navios

Guardei teu fogo e tua água
as tuas mãos entre minhas pernas
brancas o teu pão o barro do teu
refúgio a morosidade das tuas lágrimas
as tuas horas subtraídas ao sono
a manta que usavas do avesso
o ranger dos teus passos nas escadas
a tua mágoa a tua música os teus
regressos setentrionais os teus
beijos como pérolas o teu ninho a tua
ternura o teu passaporte do desejo
a alvorada do teu sorriso de onde
brotavam inimitáveis sóis

Tudo até ao meu último verso
o meu amor não cabe em dezenas de
tratados de paixão nem em
nenhum ordenamento territorial

Vento norte na curva dos meus braços e
folhas por contar em minhas mãos range um
cotovelo e fico a ouvi-lo com braços imóveis tal
como se inúteis falo um dialeto que só é entendível
por amigos próximos desses a quem confiamos até
os projetos dos poemas
com quem partilhamos espaços debaixo das
mesmas telhas e estradas para um mesmo princípio
dividimos o café a cerveja e uma floresta de folhas
e pampilhos virgens onde é sempre dia claro
o mar fora da geografia sempre presente um passeio
de bicicleta uma rima de rios e uma falha entre
agosto e setembro

Aqueles amigos com quem nos alimentamos
da mesma matéria orgânica e bebemos
igualmente a água e a clorofila para
a idêntica sede e com que dividimos as torres
de palavras apesar da minha ser menor
o ângulo da noite que ramifica em outros ângulos
uma fuga para as vogais da morte
a visão dos cabelos de um cometa a arca
do que fomos e o espetro do já não somos
o parapeito das corolas o andar à toa as
angústias sem nome os jantares de convites
a crença fora de Deus um semáforo aéreo
e a raiva que não temos

Mais a cláusula da cumplicidade na ravina da
várzea as navalhas partilhadas paredes interiores
da casa forradas com a mesma textura leia-se
estantes e prateleiras amontoadas de livros e pó
a mímica a miopia a substância do sonho livre
o mesmo amante simétrico chamado violoncelo
a chuva com os adjetivos possíveis
“a chuva companheira de todas as minhas
glórias”
até as nossas mães se parecem e quando
a nossa dor fala é pelas mesmas têmporas
sim Anthero por isso não são tão raros os nossos
“abraços verdadeiros”

Vou abrindo as mãos à madrugada
com gestos tão sem jeito
como o dizer de flores secas num vaso
esquecido pela rotina dos dias
avanço os braços tão sem força
para o respirar do amanhecer
que cresce na proporção do que é habitado
Há latidos de cães na redondeza
e na casa em frente alguém acende luzes
a velocidade do roncar dos carros
faz estremecer o ar
e pelos vinte centímetros da janela aberta
adensa-se um aroma macilento
de faúlhas e ervas mofosas
que caem com todos os vagares
até ao amargo silêncio dos esquecidos
e as sombras misturam-se com o acre
da cerração da nuvens
Ergo-me com um ranger nas costas
como se carregasse cem anos de pesadelos
o peito a contrair-se nas sombras
da solidão atravessada

E saio para a rua
à procura da minha liberdade

Que sinistra luz
a lembrar-me agora
ternura nenhuma
antes um momento
em que nos aperta
cilíndrica bruma
e onde se projeta
há somente viva
mais uma fissura
Antes fosse sombra
a tornar a noite
numa casca escura

Atravessar a sesta dos plátanos
com movimentos de flores de algodão
sentir antes dos dedos as falanges
e depois das falanges nem só dedos
membros corpo crânio
envoltos apenas numa pleura vegetal
saber do coração só por uma sílaba
e depois da sílaba o sangue como sono
no sono só uma pena do pasmo
de uma andorinha adolescente
uma anémona de água acabada de nascer
e as palavras de um poema
como plumas e música de Bach

O poema à beira da garganta
a cabeça não para de não pensar
a boca insustentável de clausura
os dedos e a caneta estremecidos
como se fosse o agreste velho inverno
e não o julho das ceifas
as palavras quase lume sem tocarem
a brancura do papel
fico entre o nada o abismo ou coisa
nenhuma aqui era melhor morrer
ou desviver até nascer de novo

…………………………………………

Chega-me o aviso de uma luz com
nome próprio reinicio o disco da
memória balança na década dos meus
vinte anos a idade em que tudo é possível
aos poucos arrisca-se a garganta
a cabeça agarra-se ao que ainda se
passa numa orgia de cores
os dedos e a boca florescem na raiz
de um clavicórdio antes do nome
reescrevem-se as palavras começam
a cair gotejos da caneta lá se vai
a virgindade do papel e entro
no poema pelo lado do avesso

Quero que me digas que não foi
só por obrigação que galgaste os ponteiros
do relógio para chegares a tempo de
pôr a mesa abrir uma garrafa de vinho e
ires buscar os copos altos enquanto eu
com alguma coerência cozinhei e
decorei a amoras o prato vermelho
e a pétalas a taça de morangos

Quero que me digas que não foi
só pela urgência dos teus dias
que subi e desci escadas e despi-me
até aos ossos para consumarmos
o amor sempre na base de ser feito
no quarto da varanda e na sala
com a lareira acesa para ser mais
rápida a combustão dos corpos
Quero que me digas que não foi
por acaso que colocaste a aliança
há centenas de dias pendurada
no esquecimento me levaste à serra
de onde eu vim colheste as flores
amarelas do meu gosto e me
abraçaste em sequências eu caibo
inteira no teu colo enquanto o sol se
divertia a dividir-se por cada um de
nós e a multiplicar-se por nós dois

Quero que digas que não foi
ou que foi seja lá o que for
porque a cada vinte e quatro horas
o que era já não há

Eu fui a tua enfermeira a tua amiga
o cais onde não desembarcavas
mas chegavas
o vento a varrer teus pesadelos
a tua esponja de banho a tua orla
o chão das tuas dores a horas e a desoras
a tua onda mais longa e a explodir de
verde ou de violeta a tua casa ou parte dela
o espelho do teu sorriso como um verbo
a crescer
a tua cama o teu segredo a tua mesa
o teu roupão nas despedidas
a tua amante às escondidas a tua mulher
de papel passado a tua namorada em plena
juventude quando fazíamos amor
E só mais não foi
porque não me deixaste tempo

Lá fora o sol fresco porque é de hoje
e quente como é de sua natureza
derrete os últimos arabescos da chuva
implacável de dois dias
os cavalos que pastam no campo em frente
são agora mais livres
nas linhas da ferrugem fechou-se a deriva
dando lugar à luminosidade das coisas
de sentir e de pensar que estavam fora da
morfologia em corpo incerto

o homem das castanhas regressa à sua casa
na rua de ontem as crianças voltam a encher
a praceta de cores e de cantigas e de mãos
dadas como beijos
os operários colocam as marmitas nos muros
mais retentores do sol os salários já não
permitem almoços nem nas tascas mais
atabalhoadas dos subúrbios
os rostos dos homens que passeiam o corpo
semicurvo vestem de triste no fim das
férias estarão abertas as portas das fábricas
e as mulheres desfazem-se para pagar
contas e pôr comida na mesa

Respiro como se estivesse no centro
de uma crise de asma
mas mudar de posição não posiciona
outra face dos factos

Dou voltas à língua para acalmar a garganta
à beira de um incêndio
que é o pensar como foi possível
deixarmos que isto voltasse a acontecer

Portugal é sabido que as eleições são livres
mas os eleitores não deviam ficar livres
das suas promessas eleitoralistas
(quem não pode não promete)
nem incólumes dos atos maléficos aos
cidadãos e ao país e dos que não fazem
a bem dos mesmos

País tão belo

Rola um trovão na estante da tarde
mas como não há relâmpago
levantam-se os pontos de interrogação
e os olhos abrem parágrafos

Se eu tivesse um revólver
eu que não gosto de armas
nem sequer de violência
penso na hipótese de atirar
uns tiros de encontro ao ar
Portugal ainda que o conseguisse
o que mudaria tirava da modorra os
sonolentos de um quarteirão

Mastigo restos de incêndio lágrimas
silêncio e pedaços do meu vestido velho
que já foi verde e vermelho

Um relógio para lá de depois do rio
alerta que são onze horas mas é bem possível
que me esteja a enganar há tantos anos
pendurado na mesma posição
já a ferrugem mordeu os ponteiros
e atravessou-o a lei da gravidade
Tantas horas desperdiçadas nos ouvidos
desprendidos das cabeças e a pesarem nos ombros
dos que têm na ideia uma navalha apontada à nuca

O carteiro não passou duas vezes
faltam-lhe os subscritos de boas novas
o cão abandonado que circunda agora
este quarteirão arrasta o choro até
à lembrança de um menino perdido
no lado de fora do quarto e dos brinquedos
e o cão ladra agora mais alto como se fome
ou revolta lhe aflorasse o pelo acoçoado

O relógio atira agora uma só badalada seca
e sem eco como se não suportasse nenhuma outra
o carteiro tem os olhos presos ao rio como se nele
procurasse uma fórmula para conseguir
notícias felizes a entregar nas caixas ou nas mãos
de olhos muito abertos
os latidos do cão são agora lancinantes fazem doer
e a vizinha da esquina estende a roupa
como se desfiasse um rosário de ossos

Poder chorar de dia
como quem canta
e poder gritar de noite
como quem sonha
poder descobrir um roteiro
de margens como brisa
e poder construir
um barco como asas
poder perder o medo
como quem desmaia
e poder ganhar do céu
o outro lado

Não quero que se entornem vozes
neste poema votado a outros sons
logo são interditos os excessos
e poucas são as coisas permitidas
Um leve roçagar de andorinhas
em direção às sacadas mais íntimas
a luz morna da brancura da cal
estendida sobre a opacidade dos muros
o arder sereno de uma rosa impávida
sem que no fundo fogo algum a destrua
um beijo como um grama de algodão
para saudar a suavidade do amor
um fruto à sombra de todos os desejos
para que possa permanecer intacto
um pedaço de terra onde nada é suspeito
desde o rasto de orvalho à réstia do sol
um odor a invocar o crepúsculo
para que a noite possa chegar paulatina
a espuma que um bote traz consigo
para sustentar a leveza do poema

A manhã de tão quente ainda
traz indícios e outros fragmentos de
ontem a pedra lisa na calçada antiga
continua sentada entre as raízes do
silêncio e as heras mal nascidas
o sol é o mesmo de ontem apenas com
laivos de poentes cinzentos porque o
por de sol cor de fogo não cabe
mais no vazio da multidão das coisas

A casa que foi do povo tão entaipada
como ontem cá fora enredam-se as silvas e
as trepadeiras daninhas lá dentro apodrecem
livros e veludos de palcos depositários de
calafrios pontos e segredos em internato
o meu coração começa a trotar como
um cavalo à solta depois de içar
as rédeas como ontem a caminho da
pradaria onde crescem flores de noite ou
rumo ao mar que lava o sarro do
pranto e a apoplexia da insónia
e parte-se da mesma forma e sempre a
horas de vésperas o pão que só os pobres
conhecem e passa mal na garganta

O incêndio na serra do caramulo é
o mesmo de ontem só com o mau agouro
de lhe crescerem os braços só os bombeiros
tombados pelas chamas fumo ou outras
marés vivas continuam mortos senhores de
estado apressam-se nas condolências se
fosse comigo dizia-lhes para as meterem
bem no fundo das costas
são os mesmíssimos abutres que nos saqueiam
os bolsos sobra espaço nas despensas
subtrai-se na cultura nas semanadas
dos filhos da nossa já nem se fala cada vez
mais a sopa chega para menos pobres e tudo
isto enquanto que faustosas refeições tal
como ontem circulam nos corredores do poder

Com ombros dependurados nas reticências já
de ontem e os rostos com mais esgares pela
noite mal dormida mulheres e homens lá
passam nos caminhos petrificados à pressa
e foi ontem à mesma hora que alguns seres
vivos emigraram e há quem não queira saber
o que diz a sua falta e mais gente vem a
caminho aqui onde sem mas é a
praça do nosso descontentamento

Era primavera e havia em mim parada
e opaca a flexibilidade de mágoa
não ser árvore onde as folhas são renovo
não ser casa onde o chão e as paredes
dão as mãos uma clarabóia que oferece o céu
e todas as portas e janelas emprestam o mar
não ser fonte a atravessar vales enquanto a
humanidade dormisse e a sua voz entoasse
até na liturgia do silêncio

De não ser verbo transitável para conjugar
movimentos e fonologia fora de qualquer
alfândega sem legenda de embarque
não ser uma flor mesmo sem nome
onde os estames abrindo desapegassem um
odor no desequilíbrio dos sentidos
era primavera mas havia em mim parada
e opaca a flexibilidade de mágoa
não ser ao menos um algo que vibrasse
ainda que pouco depois o vento o destruísse

Visto-me de mar
e respiro alongadamente
até ao adormecimento
Sonho com Creta
sonho inconcreto
de tão célere a visão
em que me descubro ou encubro
numa luarenta pitonista
entre muralhas de areia

Com tantas gavetas na memória
e algumas mal arrumadas
às vezes é difícil situar ou conjugar
as cenas certas de alguns temas
E se chego a perder-me na procura
de uma vogal ou um decibel de som
são sempre as peças de infância
quem de novo me põe em cena

Fosses terra
terias todo o meu tato
e a fonte do meu olor

Contorna-me o lampejo
dos teus olhos tão vítreos

desperto para a nudez
do teu torso tão denso

desalinha-me a mímica
das tuas mãos tão sábias

estremece-me o percurso
da tua boca excessiva

inflama-me a confluência
do teu ventre tão inciso

suspende-me a liquidez
da interioridade do teu sexo

Pela noite dentro uma incomum
vigília um poço de nevoeiro no átrio
do sono um sem sentido corso de
imagens poeirentas um perímetro agreste
no ar que não corre
uma circunferência mal feita no sem luar
um rastilho de fumo a esconjurar deuses
um esgar de conluio a escorregar
do teto um travo de raiva
a morder a vigília