A grade de ouro

Grade

Texto adaptado por Osvaldo Pinho
ilustração de Márcia Correia, Raquel Valquaresma e Ricardo Piedade

A grade de ouro

Desde miúdo – aí na década de 50 do século passado – eu ouvia falar, com alguma insistência, na grade de ouro que estava algures no fundo do rio Caima!

Certo dia, por um desses acasos que sempre na vida acontecem, escutei uma das figuras proeminentes desta lenda.

Conversava comigo, sentados num degrau de escada, comigo, um garoto na casa dos 10 anos, como se de um bisavô se tratasse a contar histórias ao seu bisneto, tão mais velho era do que eu.

Nessa época difícil as pessoas, mesmo com alguma ocupação, recorriam ao amanho da terra para a sua subsistência principal, e, como os rios Caima e Vigues passavam ali mesmo ao alcance da vista ou de alguns passos, quantas vezes completavam as refeições ora com barbos, ora bogas ou trutas.

Era o caso do Ti’Ângelo – o meu interlocutor – tamanqueiro de profissão, que pescava preferencialmente no Poço do Crasto, no rio Caima, lá para mais perto de Ossela.

Ia pelo Barbeito, margem esquerda do rio, atravessando mais à frente – quantas vezes pisando água – no açude ali no vale que se fechava logo a seguir.

Encontrava-se, invariavelmente, com outro pescador, de idade já bem avançada, que residia por perto.

A frequência dos encontros fez deles dois amigos e por essa razão passaram a pescar no mesmo pesqueiro, assim sempre não estavam sós naquele sítio ermo, conversavam e o tempo passava melhor. Até que se tornaram confidentes.

O Ti’Ângelo, bom observador, reparou que o velhote lançava o anzol, lançava… recolhia, lançava e recolhia… e peixe, nem vê-lo. E um dia perguntou-lhe:

Se neste pesqueiro eu vou tirando algum peixe, com alguma paciência, é certo, mas vou pescando, qual a razão de tantos lançamentos que faz e não lhe pega nenhum peixe?

O velho nada dizia. Calava-se. Parece que ninguém falara para ele. E o Ti’Ângelo, intrigado, prometeu a si mesmo que sempre que se encontrassem lhe repetiria a pergunta. E assim fazia.

Até que um dia – “quem porfia, sempre alcança” – naquela manhã de tempo feio, pesado, agreste, com nuvens negras que adivinhavam trovoada, tempo carregado, medonho, o Ti’Ângelo fez a pergunta sacramental.

O Ernesto, então, resolveu pôr fim ao silêncio!

Olha, Ângelo, tornamo-nos amigos e tenho verificado que és homem para guardar um segredo e por isso vou contar-te a razão de fazer tantos lançamentos e nada pescar. Mas tens que me jurar que não vais dizer a ninguém. Só com essa condição te revelarei!

Claro! – diz o Ângelo – juro que guardo segredo!
Bem, então vês que não pesco nada. Na realidade eu não sou pescador de peixes. A minha pesca é outra…

Faz silêncio durante algum tempo, como que a sacudir a memória. E continuou:

Estou aqui a tentar descobrir aquilo que o meu avô me contou há muitos, muitos anos, era eu um menino. Agora estou velho, vês como tenho os cabelos e a barba cobertos de neve.

Não quero morrer com este segredo atravessado! Ele dizia-me que aqui, neste sitio, mesmo por baixo da Nossa Senhora do Crasto, no fundo destas águas profundas e escuras, havia uma grade enorme e pesada, toda de ouro maciço, que só pode ser retirada por cinco pessoas ao mesmo tempo, mas cumprindo as instruções precisas que constam no Livro de S. Cipriano!

Falei com os meus antigos companheiros de escola e alguns vizinhos, mas não acreditaram. Até hoje! Como vês, estou velho. Nunca mais falei disto a ninguém. Digo-o a ti. Eu já não sou capaz. Sei que vais tirar a grade, fazer o que eu não fiz. Entendes?

O tamanqueiro ouviu, mas algo o intrigava.
Só não percebo que tenham que ser cinco pessoas. Se a grade de ouro é tão pesada, podia vir mais gente…
Compreendo – diz o Ernesto. Cinco pessoas correspondem… às Cinco Chagas de Cristo! Lembra-te que este local mete medo. E dizia o meu avô que a grade está guardada pelo diabo!

O tamanqueiro arrepiou. Ia falar, mas o Ernesto logo lhe disse:
Não faças mais perguntas. Arranja o Livro de S. Cipriano, que está lá tudo. Que os teus amigos não deem à língua e que sejam valentes. Reparei como ficaste com os cabelos em pé e como recuperaste rapidamente. É bom sinal! Se os teus amigos forem como tu, tudo correrá bem.

Passou algum tempo. O Ernesto, como prenunciara, falecera e nada mais lhe poderia dizer. O tamanqueiro, ausente o seu fiel amigo, tratou de reunir os cinco companheiros. Pensou dias e noites a fio, até que, finalmente, conseguiu juntar os cinco valentes e silenciosos homens.

Juntos e em segredo rigoroso tentaram e conseguiram obter o Livro de S. Cipriano, empreitada muito difícil naqueles tempos, mas ultrapassada com determinação.

Com o livro nas mãos, havia que decifrar a mensagem, o segredo mais importante sobre a grade de ouro, como conseguir arrancá-la às profundezas daquelas águas escuras.

Leu, leu outra vez e voltou a lê-lo. Nada descortinava. Meditou… e resultado zero. Mas desistir, isso é que não!

Passou a ler parágrafo a parágrafo e a tentar descobrir qualquer ligação, uma pista que lhe desse alguma luz. Ao fim de muitas semanas de gigante paciência, finalmente conseguiu!

Os amigos estavam impacientes e alguns já descrentes. O tamanqueiro explicou-lhes tudo:
– o mês do ano, a semana, o dia e, até, a hora em que teriam de ir ao fundo do rio e trazer a grade.

Chegado o tão ansiado dia, todos se dirigiram ao local, por caminhos diferentes e espaçadas horas, para não despertarem suspeitas.

Com a estratégia bem decorada, cada qual sabia o que tinha que fazer, segundo o Livro de S. Cipriano.

Atiraram-se ao rio e chegaram à doirada grade!
A noite era de luar e a grade brilhava…

Puxaram. A grade não se moveu! Não foi surpresa, sabiam que era assim, mas a ansiedade turvou-lhes o pensamento. Voltaram à superfície, para respirar e ganhar alento. Pressentiam, contudo, que algo de terrível, espantoso e medonho estava para acontecer. Mergulharam de novo, desamarraram as cordas…

Trovões, raios, coriscos eclodiram, colossais! Os cinco homens, com estoicismo, seguravam a grade.

De súbito, das águas escuras do Caima emergiram figuras extraordinárias, rugindo e lançando chamas.

Os homens mantiveram a coragem e venceram esta difícil situação! Içaram a grade até à tona de água e iam arrastá-la para terra.
Graças a Deus! A grade é… Exclamava um deles.

Novamente raios, trovões, tremores de terra, abanões e gritos desabaram sobre eles. E a grade, rapidamente, com um brilho extraordinário, desaparecia nas águas profundas.

Ninguém soube o que acontecera, nem como, mas aqueles destemidos homens, a partir daquele dia, nunca mais foram os mesmos!

Um ficou cego, outro coxo, outro enlouqueceu, outro emudeceu e outro ensurdeceu!!!

E a grade? Ainda continuará no rio?