Foi há mais de cinquenta anos! Parece que foi ontem…
Era já noite, uma noite Junho, quente e morna.
Na estrada de Coelhosa, notava-se ainda, a azáfama dum fim de dia, dedicado às lides do campo.
Enquanto alguns regressavam, havia outros que se encaminhavam para o Martins e Rebelo, de latão na mão, levando o leite, ainda tépido, ordenhado há pouco.
Existia, no Largo do Pinheiro Manso, um local de venda ao público, dos produtos da extinta empresa, conhecido também, como Casa de Vendas ou Leitaria, mesmo em frente ao antigo Café Central, também ele, entretanto, desaparecido.
Este estabelecimento ocupava uma dependência da habitação da senhora Glória do Alves, hoje pertença da filha Zélia.
Todos os dias, entre as vinte e uma e trinta e as vinte e duas horas, um funcionário, depois da recolha do leite aos produtores, deslocava-se à Leitaria, levando consigo, uma bilha com leite do dia, para venda ao público.
Depois deste intróito, vamos às recordações, que me levaram a escrever este texto.
Em minha casa, habitava connosco a minha irmã, Maria José, que tinha sido mãe há poucos meses, e como era habitual, nesses tempos, o leite de vaca (diluído) fazia parte da alimentação das crianças.
O meu sobrinho não era excepção. Algumas vezes, era eu o incumbido de ir à leitaria, comprar o leite, para a sua alimentação.
Entregavam-me vinte e cinco tostões, o preço de litro e meio de leite.
Eu lá ia, todo contente, de leiteira em punho, recipiente de alumínio, com uma tampa, normalmente arredondada.
Como quase todas as crianças, há mais de cinquenta anos, raramente via dinheiro, por isso, eu comprava um litro e ficava com os restantes dez tostões.
Enquanto esperava pela hora da abertura, acompanhava o meu colega, e amigo de infância, Amadeu do “Caçoilo”, a quem a tia Rosa, (sua mãe) incumbia da entrega e do registo, da quantidade de leite, que a vaca ou as vacas, tinham produzido nesse dia.
O leite tinha de dar entrada, nas instalações do Martins e Rebelo, até uma determinada hora. Só depois, o funcionário, poderia fazer a venda ao público.
Em casa (casa farta) da tia Rosa do “Caçoilo”, o fumeiro estava sempre bem nutrido e, como tal, uma chouriça a mais ou a menos, (pensava o Amadeu e eu também) não faria grande diferença.
Nessa noite (como em tantas outras) o fumeiro, foi desfalcado de uma. Para disfarçar, espaçava um pouco mais as restantes e estava feito o trabalho.
Entregue o leite, quando chegamos à casa do “Africano”, o Amadeu, vai ao bolso (fundo bolso) e saca duma negra e luzidia chouriça.
Com os dez tostões que eu surripiei à leiteira, fui a correr, á tasca do «Cavaquinho».
Estava ao balcão a tia Alcinda, (com cara de poucos amigos) que, um pouco contrariada, lá me vendeu os dois pães.
Depois, sentados no muro do jardim do Martins & Rebelo, foi dar ao serrote com redobrado prazer, aquele pão e a bela chouriça.
Depois da fome saciada, era o regresso a casa.
Parar no fontenário do largo do Pinheiro Manso
Para meu castigo, nessa noite, e como o tempo estava convidativo junto ao fontenário, havia uma aglomeração de homens. Foi necessário mudar de plano: seguir para Coelhosa e rezar para que o fontenário do “Juiz”, estivesse livre.
Azar dos azares! Junto à habitação da “Pita Serica”, havia gente em barda.
Os deuses da chouriça estavam todos contra mim… Arranhar a cabeça dum lado, arranhar a cabeça do outro, e agora?
Agora, é ir até ao Paúl e seja o que Deus quiser. E foi!
Da casa do tio Mário Moreira, até à Fonte do Paúl, era como entrar num túnel: todo o trajecto, estava coberto de espessa ramada, não se via um palmo à frente dos olhos. O medo era tanto, que desfazia o próprio medo, ou seja, havia mais medo do que diriam em casa e das suas consequências, pela falta do meio litro de leite e dos dez tostões.
Com o “cu apertadinho”, lá consegui encher a leiteira e seguir para casa.
Assim, o meu sobrinho Fernando, mamou do biberão, algumas vezes, com duas partes de leite e uma de água, enquanto eu e o Amadeu do «Caçoilo» comíamos pão e chouriça.
Outros tempos, outras carências, mas também as mesmas habilidades das crianças.
Para o meu amigo Amadeu do “Caçoilo”, colega de infância e de muitas peripécias, umas boas, outras nem tanto, mas e ainda assim, todas elas contribuíram decisivamente, para o ser humano que sou hoje. Tenho a certeza, que ele (se pudesse), diria o mesmo. Neste dia, partiu com ele, um pouco (muito) de mim. Até sempre Amadeu, onde quer que estejas! Um dia, haveremos de comer (e rirmos como sempre fazíamos), uma negra e luzidia chouriça, fanada ao fumeiro da tia Rosa e do tio Virgulino, com o avô Joaquim, de calças curtas, a “mandar vir”.
Coelhosa 29/09/2009
Aventino Monteiro (Latoeiro, fazedor de Latas)