por Eva Cruz A minha gatita
Nunca gostei de leite desde criança, embora me encantasse ouvi-lo gemer no fundo do latão, quando a Maria mungia as vacas ou espremia as magras tetas da cabra.
Com o tempo, e já bem tarde, habituei-me a beber leite ao pequeno-almoço, sempre convencida do seu benefício e consciente de que era um bom alimento.
Hoje, por acaso, não o tomei, pois pareceu-me que o malvado era o causador de umas pequenas dores de barriga como aquelas que tínhamos na nossa meninice.
Foi esta recusa que me fez faiscar a memória e ressuscitar no meu colo a minha gatita de outrora. São pequenas estrelinhas que por vezes piscam na nossa memória, como pirilampos no escuro.
Apesar de eu ter sido amamentada pela minha mãe até aos nove meses, depois do desquite sempre detestei o leite.
Minha mãe tentava disfarçá-lo com banacau, a deliciosa farinha de banana e cacau de que já ninguém se lembra, ou com cevada, mas eu não me deixava enganar e cuspia tudo.
Comecei então a beber chá, desde muito pequenina, e talvez por isso seja tão bem-educada. Pelo menos é o que dizem.
Na idade da escola primária, bebia chá de ervas verdes ou secas e comia um pãozito com manteiga. O chá bebia-o em casa à frente de minha mãe, mas o pão ia-o comendo pelo caminho até à escola, ou fazendo que o comia.
A escola ficava situada lá no cimo da aldeia, ainda longe. Tomava um carreirinho pelo meio do mato, desenhado e acalcanhado pelos muitos passos que por ali se deram, ladeado de tojo arnal, urzes e carquejas.
Atrás de mim, seguia-me a minha gatita amarela, filha da gata preta malhada de branco. Acompanhava-me fielmente todas as manhãs até ao cimo do monte onde passava a estrada, que mais à frente dava acesso a um outro caminho que levava à escola.
Como eu era muito biqueira, nem o pão comia, e era esse o nosso segredo, que a gatita nunca revelou.
Ela acompanhava-me sempre, enquanto eu lhe ia dando o pão, pedacinho a pedacinho, calculando os intervalos de modo a dar até à estrada. Lá chegadas, ela já sabia que não havia mais pão.
Dava meia volta, virava para trás em direcção a casa e eu seguia em frente o meu caminho.
Nasceu desta longa amizade uma cumplicidade tão grande que, quando a gatita, já muito velha, cegou, só consentia que fosse eu a tocar-lhe.
Ao contrário de mim, bebia leite…mas apenas dado pela minha mão.