Era uma vez em Outubro

Era uma vez em Outubro
Era uma vez em Outubro

Um aviãozinho de papel direito ao quadro preto foi cair certeiro no bico do ponteiro.

Pega a professora no aviãozinho de papel, volta-se e remete-o com a mesma pontaria, sem fúria nem rancor, com a mesma alegria, ao menino brincalhão
que logo perdeu a ilusão de brincar aos aviões.

Foi tão fácil entender, ele e a professora, que com a mesma pontaria e a mesma alegria, aquela guerra nem era quente nem era fria.

p.16

Era uma vez em Outubro

Em “Era uma vez em Outubro”, Eva Cruz começa por relatar a primeira experiência na escola: “sexos diferentes, sexos separados./ Também a perversão se ensina, a modos que de moral. (…) O crucifixo entre os retratos de Salazar e Carmona./ (…) Quem seria tal gente? Que importava tal gente?/ (…) Aprender!/ Que há ricos e pobres./ O senhor ou a senhora professora sempre / mimavam os primeiros com um beijinho de/ Bom-Dia”. “Uma escola muito diferente da de hoje”.

A professora tece considerações sobre a liberdade de pensamento – ou a falta dele -, a distância entre professores e alunos, a chamada pelo número em vez de pelo nome e os livros proibidos.

Lembra com mais encanto a passagem por Coimbra e o desabrochar que lhe provocou – “quando sai de lá, pensava que não havia terra mais linda do que aquela, nem era possível viver em mais lado nenhum”. Mas logo volta a encontrar-se com o passado cinzento assim que inicia carreira numa escola. Com este novo passo veio o desemprego, a falta de vagas, o não receber nas férias, a distinção entre professoras eventuais e efectivas, mas também as alunas “brilhantes e amigas”.

Eva Cruz é conhecida no meio escolar não só pelo rigor e pelas competências científicas mas também pela relação que construía com os alunos. A alguns deles, já falecidos, dedica algumas passagens deste livro.

É o caso do guitarrista Gustavo Brandão “Vi-te cantar a vida sonhando com a vida inteira” e de Hélder Neves (“Good boys go to Heaven”), para citar os mais conhecidos.

Orgulha-se de nunca ter sido vítima de má educação e de nunca ter marcado uma falta disciplinar. “Tive comportamentos mais indisciplinados mas reagia sempre de uma forma mais ou menos espontânea – sempre fui espontânea – e com muita convicção”, justifica-se. Sublinha também que nunca deu uma aula sentada – “estava sempre de pé e no meio deles, ou tocando ou chamando a atenção”.

Ou seja, uma professora bem diferente das que teve, como reconhece, e que encarna o objetivo delineado no liceu: “essa forma de ensinar tem de fluir por outros caminhos./ Mais coloridos. /Mais risonhos.”, escreve no livro.

A autora reflete ainda sobre a passagem do 25 de Abril nas escolas e as implicações, nem todas positivas, que a revolução trouxe na fase inicial. “Alguns exageros/ algumas injustiças./ (…) A guerra das forças políticas a servirem-se da escola”,.

No relato não são também esquecidos antigos colegas como a Clara, a Isilda, a Carmina, a Nelly e o Borges, a quem dedica algumas passagens.

Eva Cruz considera que “teria cabimento” apresentar este livro quando se aposentou, em 2001. “Só que tive imensa dificuldade”, justifica. “Comecei precisamente por fazer uma crónica mas depois escolhi este jogo entre o “ensinar” e o “aprender” (os versos são sempre intercalados por estas duas palavras), que já me satisfazia”.

A professora, que até se considera uma “mulher das Ciências” e quem o pai gostaria que fosse advogada, reformou-se ao fim de 36 anos de serviço porque “tudo tem o seu tempo”, mesmo que custe.

“Até estava mentalizada para a saída. Mas quando recebi pelo correio a confirmação da aposentação tive um ataque de choro que foi uma coisa incrível”, confessa. Olhando para trás, acha que fez bem, porque queria sair com as faculdades plenas. “Gostei daquilo que fiz e se voltasse atrás voltava a ser professora”, responde, sem hesitar.

Era uma vez em Outubro” sucede a “Era uma vez, Future Kids”, lançado em 2004, e “Aurora Adormecida”, publicado em 2006. Pretende ser uma continuação do primeiro, na medida em que dá seguimento ao relato deste, mais concentrado na infância de Eva Cruz.

Ambos são baseados em vivências pessoais e apresentam algumas semelhanças nos motivos escolhidos para a capa, desenhada pelo sobrinho Manel Cruz, assim como as ilustrações do interior.

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