Livro de fotografias de pinturas, acompanhadas de poesias.
Este livro é a síntese de uma complementaridade e cumplicidade que só se compreende depois de ler a publicação de Augusta Clara, “César Príncipe Sete cores e sete cordas e os riscos da felicidade” que, com a devida vénia, aqui reproduzimos.
Sete cores e sete cordas e os riscos da felicidade
Adão Cruz, como todos os seres, transporta uma história: uma narrativa do que é, do que fez, do que projecta. A pintura, que pratica desde os 49 anos (1986), tem vindo num crescendo de ocupação dos seus tempos e dos seus espaços, dos seus ofícios de viver e de representar a vida.
De um viver entre o coração e a decoração, um no exercício de cardioLogista e não de cardioLojista, outra no sentido do ornamento cultural, de uma estética de inquietação e de prazer. Uma inquietação íntima, gregária e cósmica e um prazer lírico, solidário e crítico, que se expressam nas artes da paleta e da caneta.
Pintor e poeta de coisas comuns e de causas comunitárias, Adão Cruz, com discreta determinação, tem vindo a fixar um padrão de pintura, um padrão de escrita, um padrão de conduta.
Um discurso triface e uno, como se surpreende na presente monografia de pintura, intercalada de poética e finalizada com uma reflexão.
Adão Cruz dá corpo, pois, a um discurso estilisticamente modulado e ideologicamente modelado que nos remete para um compromisso lírico, sociológico e filosófico, o empenho de alguém cuja história particular foi e continua assumidamente atravessada pela História Geral.
Como pintor e como poeta, ei-lo com Poesia na Pintura e Pintura na Poesia, balanceando entre o figurativo e o abstractivo, as duas ordens plásticas. De tal modo que para entender mais espectralmente a sua pintura, se sugira uma passagem pelos livros de poesia e de prosa poética: Esta Água que Aqui Vem dar (1993), Vem Comigo Comer Amendoim (1994), Palavras e Cores (1995). Este último é a síntese desta complementaridade e desta cumplicidade.
Para além de ilustrar as publicaçãoes com pinturas e desenhos, Adão Cruz emprega um dicionário prenhe de alusões colorísticas e visuais: cores, branco, azul, rubro, verde, amarelo, estanho, terra-siena, vermelho, rubi, carmim, violeta, púpura, ocre, Kandinsky, Chagall, Van Gogh, Jordi, paleta, telas, tintas, meias-tintas, pincéis, quadros, forma, espaço, dimensão, matemática, cenérios, retratos, silhuetas, fotocópias, arco-íris, jardins.
Recorre também ao jogo de oposições no tocante à luz, elemento-chave da óptica da criação e da contemplação: fulgor, rútilo, brilho, luminoso, relâmpago, trevas, negro, crude, pálido, baço, sombra. Código semiótico e simbiótico que o pintor e poeta elevou a lapidar: “as sete cores do arco-íris e as sete cordas da lira”.
O que corresponde às suas marcas e às suas máscaras, euro-africanas e tão universais. Tão apreensíveis nos percursos da cultura que Adão Cruz, nascido em Vale de Cambra, participa no “Movimento Arte Internacional”, comungando das fontes e dos afluentes das Artes dos século XX, num apuramento da sua via e da sua mão. Via e mão apreciadas já do Porto a Setúbal, de Vale de Cambra a Montemor-o-Velho, de Aveiro à Batalha, de Espinho a S. Pedro do Sul, de Ourense à Corunha e de Bilbau a Madrid, porém ainda não vistas em Lisboa, por vezes a capital mais distante do mundo relativamente aos portugueses.
De evocar, neste ponto, que a primeira exposição de Adão Cruz ocorreu no âmbito de uma colectiva, em 1987: “O Médico e a Arte”, no Salão Nobre do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
Ligação à medicina, natural num perfil médico, estético e ético, que enfileira numa galeria de artistas e escritores deste estrato que, em Adão Cruz, como em tantos outros, mais do que uma profissão é uma profiMissão, com experiências de João Semana do Portugal e da Guiné das décadas de 60 e 70 e de actualizações cosmopolitas do ramo.
Fernando Namora, também médico, escritor e pintor, escreveu “Retalhos da vida de um Médico”, relatando episódios de uma carreira nas topografias do abandono. Adão Cruz participou destas itinerâncias da saúde dos nativos lusitanos e dos nativos guineenses.
Com este banho rural, colonial e transnacional recebeu igualmente um património de contágio que, na Pintura, se cruzou com Van Gogh e Chagall, Picasso e kandinsky, Mário Botas e outros sinalizadores, e que, nas Letras, integrou dádivas de Cícero e Ortega Y Gasset, Changeux e Gandhi, Proust e Rafael Alberti, Alain Touraine e Alain Prochiantz, Joe Mannath e Umberto Eco, Omar Calabrese e Mukarovsky, Eça de Queirós e Miguel Torga, Jorge Amado e José Saramago, exemplos das suas boas companhias.
Assim verte as suas afeições, as suas imaginações e as suas indignações. Uma pictórica de júbilo, melancolia e empenhamento. Em termos de formalidade académica, uma pintura, ora mais legível (paisagens exteriores e interiores, pátrias de acusação e eleição, vertigens de árvores e chaminés, colinas e nuvens, figuras do Amor, do Trabalho, da Paz e da Guerra), ora menos evidente (horizontes desvanecidos, gestos declamatórios, vagas multitudinárias, derrames cromáticos).
Para o artista, a pintura advém como pronunciamento e como prenúncio, nas ruínas e nas construções do Homem, nos barcos e pássaros, nas árvores e mulheres, nos astros e frutos, nos corpos e instrumentos musicais.
Na maioria, as composições não são suportadas por títulos, mas restam sublinhações literárias, onde ressaltam as antinomias, acentos das dialécticas do real e do ideal: Encontro, Desencontro, Insubmissão, Repreensão, Sonho Adormecido, Sonho Perdido, O Gesto e A Sombra, A Razão e A Sombra, A Senhora dos Barcos, Homem na Praia, Origem-Destino, Do Céu Tombou A Lua, Altar da Utopia, Fantasia, De Luto, Padroeira das Bombas, Senhora dos Anéis.
Núcleos temáticos e problemáticos que demarcam climas e convicções, quer em forma geométrica e em forma assimétrica, em tons rectangulares, circulares, cónicos ou cúbicos, quer através da persuasão das manchas, do não expressamente dizível.
Aí cabem abóbadas terrestres e celestes, bichos, plantas e homens, objectos e memórias, num tenso diálogo que se desdobra e se sublima, estendendo-se do cósmico ao cómico, do finito amoroso aos amanhãs que urgentemente nos apelam. O solar e o lunar pairam nesta Pintura Poética, que nos recoloca no mapa do autor, entre o Rio Douro e o Rio Cacheu, no meio e nas margens das inúmeras correntes que nos fazem e nos desfazem, nos libertam e nos cativam.
Tais pressupostos impelem o pintor e o seu observador para uma estrutura intelectual de inspiração latina e francófona, típica dos anos 60, com as artes sustentadas pela cidadania e pelo pendor especulativo. Uma das citações de culto de Adão Cruz é paradigmática: “A que mais se deve ligar, senão à Vida, o único presente que o bom Deus nunca faz duas vezes?”(Marcel Proust, “À la recherche du temps perdu”).
Logo clarificada com a autenticação de Gandhi: “A certeza da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte”. Desiderato que Adão Cruz tem realizado ou ensejado nas “horas sem tempo”, na “sede de todas as fontes”, sempre que possível num “seio ao vento” ou no “vento preso à cidade”.
Tentando, no seu castelo aberto, manter a esperança de que “os vivos ainda não morreram de todo”. O que requere paciência e demais apetrechos civilizadores, estampados neste invento editorial: “Tempo, Sonho e Razão”.
No fundo, o confronto de Adão com a sua Cruz, a sua viagem terrenal e a sua voragem temporal, em “consonância com a luz do Universo”.
Uma sintonia que, neste Adão, não se perspectiva conforme o lendário do Velho Testamento ou na Cruz do Novo Testamento, em virtude do Pintor, Poeta e pensador haver seguido por outras sendas e com outras senhas.
Temos, consequente e coerentemente, um Adão da “biologia do espírito”, com os pés assentes no planeta de Darwin e Galileu, de Einstein e Neruda, com uma iconografia de verdade e usufruto, de braços e abraços partilhados na edificação de uma Terra onde não seja proibido exibir espinha dorsal e existir com dois olhos na cara.
Neste tempo de Sonhos exilados e de Razões silenciadas, só ganharemos em retomar os pretextos dos bons clássicos, de eterno retorno às cores que resistem, aos alfabetos de identificação pessoal e social, signos que não devem legitimar alguns bípedes em detrimento da humanidade.
A Arte não é artimanha.
A Arte não é só artifício.
A Arte é um contrato com as agruras da sobrevivência e as aventuras do infinito.
Tal mister implica o domínio do já feito para a sua ultrapassagem ou diversificação, domínio teórico e técnico.
Exige cumulativamente, sem dúvida, ânimo conspirador para arrostar com os equívocos e as tentações entre mérito e mercado.
Compete a Adão Cruz sabê-lo, desde que, no Paraíso, aceitou o pomo da concórdia, cedo metamorfoseado em pomo da discórdia. Recordação bastante para um proceder advertido dos riscos da felicidade. Da felicidade individual e da felicidade colectiva.
O que não impede os chamamentos mobilizadores e a correspondência dos que ousam investir Tempo com Sonho e com Razão.
Apesar de tudo, “Eppur si muove”: “E contudo (a Terra) move-se”. Não é, Galileu Galilei? E “O sonho comanda a vida”. Não é, António Gedeão? Não é, Manuel Freire? Não é, Adão Cruz?
(in Adão Cruz, Tempo, Sonho e Razão, Campo das Letras)