por adão cruz
Quem se sentasse na mesa em frente, perto da janela, via sempre, não só a velha e esguia Torre dos Clérigos, mas também o Isabelino e a Geraldina a trocarem olhares ternurentos. A empregada do café, uma loura descaída nos anos e no corpo, disse um dia ao Isabelino:
– Isabelino, por que não se junta à menina Giraldina, e deixam de estar aqui, todos os dias, a lamberem-se com os olhos? Até o D. António já virou a cara para o outro lado. Qualquer dia cai da estátua.
O Isabelino, franzino, encolhido, sorriu por entre as falhas dos dentes, e a Geraldina, gorda, roliça e peituda, baixou os olhos meio envergonhada.
– Que Deus lhe dê melhor sorte, disse a mãe da Geraldina, com o dobro da idade e da gordura da filha, avançando a sua presença com um par de repolhudos seios.
– Melhor sorte a quem? Perguntou a loura, passando o pano na mesa.
– A ele, coitado! Ela é um paxá, uma calaceira, não sabe estrelar um ovo nem coser um botão, não faz nada, eu é que faço tudo.
A Geraldina torceu a boca com a maldade da mãe e o Isabelino abriu mais o sorriso e as falhas dos dentes, deixando que tais acusações entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro.
Ora, estas conversas aconteceram uma semana antes de a Geraldina ser internada. Ela caíra na rua junto à mercearia e, segundo a peixeira, os INEMs levaram-na para o hospital de Santo António, ali ao lado, onde ficou internada com um esgotamento.
O Isabelino ficou muito triste, e quem estivesse perto podia enxergar-lhe umas gotitas de água ao canto dos olhos.
O Isabelino não tinha um emprego sólido, melhor dizendo, o Isabelino não tinha um emprego nem sólido nem frágil, e dizendo ainda melhor, o Isabelino não tinha emprego.
Tinha um carro, um desses carrinhos de supermercado que ele abafara, um dia, no Continente. Com ele levava sacos de batatas, cebolas e hortaliças desde o mercado à casa dos clientes.
Logo que a Geraldina fosse desinternada, seguiria o conselho da loura descaída. Estava decidido.
Havia uns casozitos com a polícia, mas nada de maior. Juntava-se a Geraldina, iriam viver para casa da sua madrinha Porcina, que tinha um quartelho para alugar, ali ao lado da torre, quem desce a rua da Assunção, e passaria a trabalhar a dobrar, ora no mercado grande, ora no mercado pequeno.
Convém saber que todas estas coisas se deram uma semana antes de a Geraldina morrer.
A Geraldina morreu, mas ninguém sabe de quê. Há quem diga que foi da pouca sorte, há quem diga que foi destino ou mau-olhado, mas também há quem diga que morreu de amor.
O Isabelino como que se esvaziou. Sentiu-se desligado, desbobinado, descalibrado, despovoado, deserdado. Não era preciso estar muito perto para ver que as gotitas de água ao canto dos olhos se fizeram lágrimas. Vendeu o carro por cinco euros ao sobrinho da peixeira e levou sumiço.
Ora, tudo isto aconteceu uma semana antes de a mãe da Geraldina reaparecer no café, acomodar os cento e tal quilos em duas cadeiras da mesa do canto e começar a chorar:
– Coitadinha da minha menina, era uma jóia, era um anjo, tão minha amiga e tão amiga de toda a gente, faz-me tanta falta, trabalhava que nem uma moira, antes Deus me levasse a mim.
A loira descaída pousou a bandeja, enxugou-lhe as lágrimas com um guardanapo de papel e fez-lhe umas festas no cabelo.
Do Isabelino ninguém falava. Do Isabelino ninguém sabia. Quem, por acaso, uma semana depois, se lembrasse de descer a Rua da Restauração e ir dar uma volta pelas margens do rio, poderia calhar de ver o Isabelino ali para os lados da Cantareira, carregando às costas uma rede de pesca. E poderia vê-lo, também, sentado junto ao rio, escrevendo com um pedaço de caliça na proa de um barco meio desfeito, o nome giraldina.
E se a curiosidade se sentasse junto à margem, na mesa de pedra onde os pescadores jogam a sueca, ouviria certamente dizer que Isabelino andava meio tolinho e estava convencido, coitado, de que Geraldina tinha morrido com saudades dele.