As nuvens não são mais de algodão

As nuvens não são mais de algodão
As nuvens não são mais de algodão

As nuvens não são mais de algodão

Prefácio

Creio ser da essência do Homem o ancestral reconhecimento da sua impotência perante o infinito. O Poeta deixa-se imbuir duplamente desse sentimento, mas encontra sempre maneira de, como Prometeu, roubar algumas sementes de fogo à divindade.

Manuela Correia dá bem conta, nos seus poemas, dessa humana incapacidade ( … as minhas asas caíram numa alameda de lodo), mas essa confissão de humildade não deixa de pressupor as asas com que os poetas demandam as nuvens e os reinos próximos aos deuses.

Com elas (e um pássaro a habitar-me) planou lá no alto e trouxe-nos, a nós que rentamos mais vezes pelo lodo, quadros e momentos da vida, do transitório e do contraditório. Deixou-se arrastar pelo vento da memória, com incursões à infância, detendo-se por vezes em miradouros donde presencia, comovida, o corpo de terra em que moramos.

Mas as suas travessias de pássaro teriam fatalmente de privilegiar o país do amor, lá onde se verificam estranhas coabitações: o medo do amanhã, o ciume do passado e o travo amargo do presente; a amizade na ausência (a distância arde), as imprudências de Verão, os laços com alguém com poderes e saberes especiais, a procura, o encontro, a paixão e também o desencanto.

É ao cantar o corpo (por vezes em letargo, por vezes em lume, outras em falência) que o pássaro se esmera. Valerá bem a pena determo-nos sobretudo em alguns desses poemas por onde perpassa um delicado erotismo, como em : Na pose mais angular resvalam longas gotas de lume ou de luar.

Ainda que se apercebam, nesta obra de Manuela Correia, algumas saborosas ressonâncias e cadências de David Mourão-Ferreira (reconhece ela que a sua influência terá sido a mais duradoura de todas as suas leituras), são estes temas servidos por uma linguagem mesmo assim surpreendentemente sugestiva e original, que suscitará o prazer estético da leitura, acompanhada que vem de outras virtudes: equilíbrio, simetria, sentido rítmico, domínio e propriedade da metáfora.

É o primeiro canto do pássaro. Mas seguro e maturo. E com futuro. Por isso, nos ocorrem, ao encerrar este convite à leitura de As Nuvens Não São Mais de Algodão, os seguintes versos da autora:

E que secreto murmúrio
Ao redor de uma crisálida
À espera de ser futuro

Antero Monteiro

Há ruas feitas de espuma
nos estendais da memória
numa sacada de vento
uma lua transitória
Mas a memória viaja
ainda que emigre a lua
rola por dentro do vento
na espuma emerge e flutua
Como uma jangada ébria
numa corrente convulsa
Mas de repente é uma nuvem
que a fímbria de um grito expulsa
Ou então um labirinto
represado num planalto
E chega a ser uma esfera
se sargaço ou de basalto
E depois é já uma torre
feita de meses e anos
de dias e vitrais foscos
e degraus de desenganos
Mas às vezes é um templo
de imagens que vão rodando
Ou um pórtico a nascente
do tempo que vai passando

Como os laços
que julgamos infinitos
irremediávelmente se desfazem
De repente um corpo
que deu corpo a um todo
é só miragem
Há ainda penas
do pássaro que emigrou
na curva da tarde
mas no lago do dia
menos um reflexo
e a distância arde
De nada vale
apertar os dedos
para reter a ausência
Já aconteceu
o tempo não se comove
e vai esgarçando a existência

Já te quis tronco
barco sombra
porto lago
incenso pássaro
Quero-te agora
fruto trova
rio mosto
grito corpo
sofregamente
ante meu ventre

De longos rios nascem oceanos
de margens sombrias e solares
De longos meses crescem muitos anos
de dias triviais e alguns ímpares
Do que vai sobrando dos anos e oceanos
há o corpo de terra em que moramos
E será que remamos ou rumamos
a braços ou de bruços com os anos
em gestos ou em gritos com a terra
de costas ou perfil para os oceanos

Apetecia-me hoje
a ternura de um nome
Um verso em vez da sede
um barco em vez da fome

Um sol mesmo de Inverno
uma estância vazia
Um pássaro a habitar-me
em vez da letargia

O vulto de uma árvore
a cadência de um passo
Uma rosa de orvalho
um ombro em vez de um braço

A brisa nos joelhos
um rasto a despertar
Areia em vez de muros
dentro de casa o mar

A par do silêncio
há asas enormes
no voo do teu corpo
enquanto dormes
As tuas asas
cruzam o meu sono
Bifurcação de luas
no Outono

De que vale ao longe a torre
se as minhas asas cairam
numa alameda de lodo
Onde o sol só vem de noite
cheio de sono e neblina
derramar uma luz roxa
E as madrugadas revelam
a cinza de uma quimera
o choro de um violoncelo
Tão perto um rio se esconde
tão longe a sombra projecta
os ramos de nenhum tronco
E que secreto murmúrio
ao redor de uma crisálida
à espera de ser futuro
Rouco canto das cigarras
a pendurar-se nos muros
a baloiçar nas arcadas
Franjas de vento ressurgem
de cotovelos de estátuas
de joelhos de colunas
todas vestidas de barro
saem do verde das pedras
para lá do simulacro
Que lasso desponta um cedro
E que cedo que anoitece
nas muralhas de um castelo
Como os dias se desenham
num retrato fugidio
de líquidas horas prenhe
E de onde se avista a torre
as minhas asas caídas
num chão de luto ou de lodo

Meus olhos rasos
da tua ausência
vão-se fechando
secretamente

Tombam os astros
morrem as rosas
Caem as noites
outrora auroras

Arcos de sombra
pintam o espaço
Dedos de vento
quebram estátuas

Tocam os sinos
em letargia
Choram os rios
densos de bruma

E o meu sono
finge que dorme
Na tua ausência
tudo se entorna

Como dizer que não me perco
nesta canção contraditória
Se tão depressa avisto a praia
se num segundo é só memória
Se vejo as rochas prolongadas
entre uma água que cintila
que agora são de pedra firme
mas que depois são só de argila
Que tão depressa me convocam
como de seguida me esquecem
Como as ondas que me exaltam
e já a seguir não acontecem
E como o brilho de uma faca
tão de repente lembra a estrela
que ora consegue reprender-me
que ora consigo removê-la
E de repente existe um espelho
a estremecer de transparente
Que tão devagar me conhece
que tão depressa me desmente
E num instante é a cidade
que num segundo me despede
É outra agora a capital
a minha sombra não tem sede
Mesmo que se unam as arcadas
e se misture o som das liras
o que aparenta ser verdade
é lá no fundo só mentiras
Do outro lado um horizonte
a sustentar a cor da prata
que tão depressa se aproxima
e mais depressa ainda me escapa
E sobre a linha deste jogo
há um corrimão sempre a subir
E a luz de um grito que me agarra
pra me soltar logo a seguir
E é agora o galope do vento
a querer-me levar os segredos
ora a expiar-me todo o sangue
ora a escorrer-me sobre os dedos
E com que corpo é que ficamos
para chegar a outras margens
se este caminho que nos acha
já se perdeu noutras viagens
E o que nos sobra é só céu
e o que nos fica é só terra
E se era simples a batalha
porque perdemos nós a guerra
E nós vivemos a aventura
do sopro débil ao mais forte
que nos declara só a vida
mas tem-nos prometida a morte
E de nós nada ficará
depois da cinza e da memória
Como dizer que me encontrei
nesta canção contraditória

Sobre este tempo acorrentado
tombam auroras e baladas
Mas entre as sombras lá no fundo
trazem chicotes e navalhas
A transladação das palavras
leva-a o vento quando sopra
como uma pena resgatada
à solidão que não tem boca
Entre as paredes da memória
rebentam ondas de neblina
como uma torre só de bruma
sobre um restolho só de cinza
e chove a pique nas arcadas
que acobertavam o passado
E nenhum rasgo de futuro
tira ao presente o travo amargo
E de nada vale haver vigília
ou mesmo insónia declarada
Se o grito em espuma se volveu
e adquiriu a cor do nada

A luz recortada
no rasto da chuva
Antes dos teus dedos
o feltro da luva

A rosa tardia
no muro mordido
Antes dos teus olhos
as lentes de vidro

O som da sonata
a emergir do barro
Antes dos teus lábios
a cor do cigarro

O hálito do dia
em pausa estendido
Antes do teu vulto
a capa do livro

O pino do sol
no ar dos ciprestes
Antes do teu corpo
a sombra das vestes

O veio do verso
suspenso num canto
Antes da nudez
o espasmo e o espanto

O tempo e o toque
em linha de jogo
Antes do esperma
o arco de fogo

Como se em volta a luz quase acabasse
Como se um degrau fosse breve impasse
Como se já não fosse primavera
Como que o ar de um poço à minha espera

Como se a sombra tecesse um disfarce
Como que uma flor prestes a quebrar-se
Como se o tempo estivesse de borco
Como se alguém transladasse o meu corpo

Como se ao longe um bailado de bruma
Como se ao perto uma orquestra de espuma
Como se eu flutuasse numa nave

Como se alguém estivesse a dar-me a mão
Como se dormente o meu coração
Como se rangesse a última chave

Teu corpo foi a sombra que eu buscava
quando o sol do meio dia me aturdia

Tua alma foi a luz que eu procurava
quando à noite nem um círio se acendia

Teu corpo foi a harpa que eu sondava
pra meu corpo roseira melindrosa

Tua alma foi a trova que eu sonhava
pra minha alma cinzenta e cor de rosa

No teu corpo de novo
uma canção de lua
uma dança de fogo
Distendes e contorces
o torso a nuca as ancas
num ritual de poses
Na pose mais angular
resvalam longas gotas
de lume ou de luar

Galgaste já todas as sebes
p’lo tempo dentro feito louco
Agora sei que me persegues
mas não me importo nem um pouco

Nada sobrou desse imprudente
Verão entre loucura fluída
É já Outono e ele desmente
o teu lugar na minha vida

Digo luto das aves que emigraram
do efeito do vento digo causa
digo néon das arcadas do céu
Digo verso da pose de uma pausa

Digo cerne de um canto que resiste
digo cedro da sombra que se cerra
digo água de um corpo que se evola
Digo verso da paz que vem da guerra

Digo roxo do verde que se ausenta
do silêncio que range digo pedra
digo pranto do riso que demora
Digo verso da onda que se quebra

Digo golpe da luz que fere os olhos
da treva que se avulta digo gume
digo presídio do átrio de um posto
Digo verso do tempo sobre o lume

Digo da tua voz rebentação
quando afinal queria dizer cadência
E que dizer das palavras em surdina
canto   ternura   essência

Digo do teu silêncio ausência
quando queria dizer apenas pausa
E que dizer do som que tem por dentro
rima   seda   pasmo

Digo do teu sorriso alado
quando queria dizer fluorescente
E que dizer da polpa dos teus lábios
flor   mosto   nascente

Digo dos teus olhos aguarela
quando queria dizer profundos poços
E que dizer da pálpebra que se cerra
sono   elipse   esboço

e digo do teu vulto verde
quando afinal queria dizer incenso
E que dizer do teu corpo sem ser
tronco   porto   templo

Era o Outono vago e distraído
sentado rente à tarde sobre a espera
com filamentos na fisionomia
de uma nostalgia solta e severa
Era depois da bruma um palácio
na linha horizontal do imaginário
Mas a luz se existia não descia
ao fundo do terraço solitário
Era no ar um rasto de saudade
rangendo sobre a cor de um malmequer
Era na sombra um riso de criança
era no vento um rosto de mulher
Era no muro além da lama o lodo
era no chão além da pedra a areia
Era no lago além da folha o fruto
era no tempo além do tecto a teia
Eram na rua passos arrastados
era no rio um choro de queixume
Eram no céu uns olhos fugidios
era na cinza a presença do lume
Era nas casas um risco de fumo
uma pausa no prado do abandono
Era na tarde uma sebe de barro
No infinito a elegia de Outono

Era o Outono vago e distraído
sentado rente à tarde sobre a espera
com filamentos na fisionomia
de uma nostalgia solta e severa

Era depois da bruma um palácio
na linha horizontal do imaginário
Mas a luz se existia não descia
ao fundo do terraço solitário

Era no ar um rasto de saudade
rangendo sobre a cor de um malmequer
Era na sombra um riso de criança
era no vento um rosto de mulher

Era no muro além da lama o lodo
era no chão além da pedra a areia
Era no lago além da folha o fruto
era no tempo além do tecto a teia

Eram na rua passos arrastados
era no rio um choro de queixume
Eram no céu uns olhos fugidios
era na cinza a presença do lume

Era nas casas um risco de fumo
uma pausa no prado do abandono
Era na tarde uma sebe de barro
No infinito a elegia de Outono

Era talvez amor
quase uma flor de julho
Contudo era desejo
no instinto sem rima

Havia o tom de agosto
e a ária de setembro
As bocas em silêncio
mas os olhos falavam

Mas foi em vez da flor
a semente do medo
quem mais alto cresceu
desmentindo os sentidos

E do que seria amor
no fundo só ficou
trémulo desencanto
numa ruga de outubro

Meu corpo vulto
de asas quebradas
Sombra de rio
de águas paradas

Grito perdido
tronco tombado
Meu corpo porto
abandonado

Meu corpo hirto
num cais de vento
Caiu na áspera
casca do tempo

Disposto em cruz
feito de ausência
Meu corpo absorto
abriu falência

Flui em ti
o cheiro que conheço
Todo integral
entre o ventre e o pescoço
No cheiro flutuo
no torso adormeço

Quem deu à tua voz esse direito
de transladar o que me vai no peito

E quem te conferiu essa ousadia
de alongares na minha alma a poesia

Quem pôs nas tuas mãos esse papel
de servir de bainha à minha pele

Quem te fez portador desse condão
de seres de mim mesma guardião

Quem te dotou dessa sabedoria
foi talvez um Deus que me conhecia

Sobre  os anos vividos num planalto
tomba um sarro secreto de lembrança
Entre a forma da casca mais cerrada
a fome de voltar a ser criança

Sob o véu desta luz aquela sombra
abrindo apenas nevoeiro a pique
Mas que do sarro e do nevoeiro ao menos
a fome transitória ainda me fique

Na minha sombra rumorosas águas
nos meus ombros uma sebe quebrada
sobre o meu peito uma rosa de cinza
sobre o meu rasto uma cruz levantada

Nos meus dedos o verso mais ambíguo
na minha boca o travo mais silvestre
os meus olhos para além do mar azul
o meu nome no tronco de um cipreste

Meu amor não digas mais
deixa ainda uma palavra
suspensa nos beirais
Doce rosa brava
que nos encadeia mais

Meu amor canta baixinho
só com música de fundo
Mexemo-nos de mansinho
não vá acordar o mundo
e estremecer nosso ninho

Meu amor amemos tudo
em silêncio e em segredo
nesta hora de veludo
Porque amanhã tenho medo
que nasça nada e morra tudo

Era um céu todo suspenso
era um sol tão de incenso
eram rosas tão bordadas
Era uma maré sem ondas
galerias tão redondas
eram asas tão nevadas
Era um silêncio tão virgem
um zimbório sem vertigem
uma alameda tão gázea
Era um canto sem sufoco
um simulacro barroco
uma lua tão amásia
Era um verso iluminado
era um templo tão velado
um perfume tão etéreo
Mas tudo era tão real
Quem pintou o original
e indubitável mistério

Quantas sombras se entrelaçam
neste patamar nocturno
Quantas asas submersas
neste silêncio soturno
Não se podem pendurar
lamparinas como estrelas
Porque dedos invisíveis
vêm logo dissolvê-las
E toda a luz que dariam
não a vamos conhecer
Porque o tampo que há no tempo
esconde-nos esse prazer
E o que ao longe nos evoca
ao perto não nos diz nada
São só fileiras de pó
e neblina estagnada
Nenhum vento nos transporta
nenhum ventre nos acolhe
Porque temos que ficar
num posto que se não escolhe
E tudo parece pasmo
numa pausa de abandono
Será prenúncio de morte
ou só prelúdio de sono

Perdi-me
Balanço
como um vime
sem descanso
Ele nos fios
do vento
eu nos rios
do pensamento
Em ruas fartas
de enseadas
como cartas
baralhadas
E fluímos
nós em voltas
como limos
em marés soltas
Mas o vento
agora amua
O meu pensamento
continua
Volta o vime
ao seu ponto
(viagem finda)
Eu perdi-me
e não me encontro
(ainda)

Exactamente como se fora hoje
quadro acabado de pintar
Eu criança no colo do gato
e o laço do cabelo a deslizar
Os pessegueiros em flor a vigiarem-me
as galinhas a arar o quintal
as videiras a chorar não sei porquê
e eu a fingir de fada tal e qual
Uma túnica cor de rosa até aos pés
uma varinha com uma estrela de retrós
a porta do mistério entreaberta
e uma réstia de sol no algeroz

Quando desfio frases
depois de nos somarmos
há restos de beijos
nos acentos
um odor a maturação
nos parágrafos
E num preâmbulo
suspenso mas latente
as ruas do teu corpo
em movimento

Diz-me quem foste
antes de seres
quem és agora
Quando nasceste
em que terraço
viste a aurora
O que ainda guardas
da tua infância
em que gaveta
Como saltaste
prá adolescência
em curva ou recta
Por quantos gritos
foste invadido
ao fim da tarde
Em que pomar
colheste o fruto
que era de carne
Em qual insónia
gravaste o sonho
que te assaltava
e em que noites
os teus silêncios
foram de lava
Qual era a trova
de harpa ou guitarra
que te embalava
e no teu copo
havia uísque
ou limonada
E o que havia
a prolongar-te
pra lá do eco
Quarenta raivas
oitenta fugas
quantas ao certo
ou eram ninfas
tuas amantes
de negro ou branco
ou era apenas
só tua alma
em riso ou pranto
Em que solstício
mais te perdias
ou encontravas
sobre que areia
de praia ou bosque
tuas passadas
De que motivos
pintaste as ruas
feitas de vento
e com que asas
ilimitaste
o pensamento
De que passado
é que irrompeste
p’la noite fora
Diz-me quem foste
antes de seres
quem és agora

Quem sabe se mãos serenas
não nos secarão o pranto
E se profundas gargantas
não nos darão novo canto

Quem sabe se aos nossos olhos
não nasce um sol inaudito
E  se a nossa condição
não terá a cor do infinito

Quem sabe um tempo impoluto
não nos calará a sede
E o salto pra esse tempo
não será feito com rede

Quem sabe não nos espera
uma nova identidade
E tudo não se conjuga
numa outra Eternidade

Há uma surdina de pó
no cansaço das horas
Um bailado de sombras
trepidante nas rosas
Na tarde mais que tarde
quase noite rasgada
ouve-se ao longe o rasto
do som de uma navalha
que atravessa o poema
que no céu estava escrito
E quebra a litania
de um verbo indefinido
Na espessura do ar
há o espaço de um buraco
onde se solta a bruma
de um pranto inconvocado
Que é das noites mais claras
que iluminavam palcos
E os sentidos fluíam
nos cenários mais altos
E a luz se demorava
por dentro das paredes
E o tempo dava à luz
um sorriso de sedas
Não se erguiam ruínas
no poente das horas
Não se cerravam sombras
nos capítulos das rosas
O silêncio era música
e céu espelho redondo
as palavras metáforas
a espera reencontro
Mas esta noite é roxa
traz um ópio nas veias
ostenta barricadas
e suprime as clareiras
A brisa traz consigo
as ondas mais concêntricas
de um fumo sibilino
de miragens e ausências
E a noite não tem rosto
só braços insensíveis
E o tempo é um corpo austero
de longas cicatrizes

No limiar dos teus olhos
água doce
onde repousavam
as minhas travessias
de pássaro

Conheces a rosa
na roda ou na ronda
do toque ou da rima
na polpa dos dedos
Conheces a rosa
na sombra ou na réstia
da ruga ou do riso
na linha do rosto
Conheces a rosa
rosácea ou retinta
suspensa ou surpresa
na orla do corpo
Conheces a rosa
ou roxa ou cerácea
na rasto ou no rasgo
da insónia ou do espasmo
O resto   o resto
é um roseiral interior
que não conheces

Não não digas nada
agora que se aproxima o Outono
Deixemos apenas falar os frutos
e a pauta de Setembro
Vamos pintar um quadro
a néon e a luar
que grave esta estância
Lá fora há uma taça de Lua
à nossa espera

Lembram-me às vezes teus olhos
o simulacro de um lustre
Por dentro todo surdina
por fora todo lacustre
Nos lados um sibilino
reflexo todo candente
No centro todo um segredo
que segrega a luz nascente


Passa não passa estilhaça
o tempo que se contesta
Como casca em rodopio
no cerne de uma floresta
Nos promontórios de luz
mora a sombra nos terraços
Mas o tempo não se inquieta
vai e vem nos mesmos passos
E no presente em aberto
a verdade nos atira
E amanhã com o mesmo rosto
declara-nos a mentira
Acende-nos a memória
na rotação de um momento
Mas na volta da passagem
lembra-nos o esquecimento
Das coisas da existência
do que ao certo nos consome
E o vislumbre do abismo
é um impropério sem nome
E cada vez que julgamos
que o tempo pode arrumar-se
Ele cobrará o julgamento
sem uma ruga ou disfarce
E sobre nós quantas vezes
lança o pasmo de um deserto
Que faz emergir a dúvida
no que tínhamos por certo
E por mais tempo que tenhamos
nunca chegámos a tempo
de decifrar o enigma
que há no seu comportamento

Mas o tempo é também mestre
e vai-nos dando lições
em assuntos triviais
em matéria de ilusões
E às vezes à nossa volta
é uma insolvente muralha
que nos defende do vulto
da bruma que se coalha
E quando o tempo é um baloiço
que com tempo nos embala
No despertar de uma praia
no dormitar de uma sala
E por vezes é um quadro
cheio de luz e de cor
Que fala de um sonho místico
e de uma história de amor
E o tempo é também viagem
que nos ajuda a crescer
Que nos ensina a existir
dentro do verbo de ser

E o tempo pode ser tudo
até o que se não quer
O espaço que empurra a vida
para uma morte qualquer
Que pode ser um suicídio
na curva do entardecer
o simulacro de um baque
um motivo a esclarecer
Ou pode ser um enfarte
um câncer ou um acidente
E o tempo discorre impávido
na não morte de outra gente

Toda esta viagem de palavras
sei que começou faz muito tempo
Porém é lacuna a data exacta
por mais que revolva o pensamento
Mas lembro sem dúvida o lugar
e os verdes tão dispersos e em ordem
E dentro da dúvida do tempo
habita a certeza de eu ser jovem

Lembro que foi à tarde a explosão
quando ao fixar o céu decifrei
– As nuvens não são mais de algodão

Depois a quietude e a inquietação
em mistura sempre irregular
Apesar da vida ser um gráfico
eu tinha o estigma de sonhar
E se havia a terra a inebriar-me
para lá dos frutos e raízes
quanto mar também me seduzia
entre as ondas tristes ou felizes

Foi no fundo essa constatação
o desenlace e a luz no segredo
– As nuvens não são mais de algodão

E lembro as colinas das quimeras
queimando e esfriando como o gelo
E um silêncio raro à espera
do grito que vinha desprendê-lo
E também o amor meu deu motivos
para tantas tantas incursões
Porque tinha a alma alguns outonos
e o corpo tinha tantos verões

Foi sem dúvida essa inscrição
no azul do céu ou do meu vislumbre
– As nuvens não são mais de algodão

Depois um ópio de bruma ou astro
foi alastrando nos meus sentidos

Fui descobrindo novos caminhos
lúcidos uns e outros confundidos
Por entre a dúvida da certeza
dessa data exacta da viragem
Há só a certeza desta dúvida
há-de ter que fim esta viagem