Escritos de areia

Escritos de areia

Escritos de areia

o parto que sonhei
foi talvez um equívoco
o mar não deu à luz
apenas deu à costa

olho o mar
e pressinto uma maresia
olho o sol
e comove-me um solstício
olho o tempo
e reconheço o nada intemporal

só nesta praia
a tua sombra é o barco
que me leva a percorrer
todas as enseadas do teu corpo

e quanto mais aperto
entre os dedos a areia
tanto mais me pergunto
de que lembrança é feita

e é quando fecho os olhos
que vejo com mais sólida nitidez
o requebro transversal da ria
a avenida acesa de movimento
e sobretudo a simetria expressa
das listas ímpares das casas

de que marca
a mímica da areia
está despida

de que sono
as pequenas rochas
são represas

de que orquestra
a espuma das ondas
tem o espasmo

de que silêncio
todo o céu
está coroado

de que tempo
este sol
ainda intacto

não me vistas palavras
desnuda-me antes
o manto e a saia
para eu ser livre
e dançar até ao excesso
nesta praia

olhando o mar até ao infinito
– oh súbita imagem misturada
de lúdico e sagrado –
vejo nas ondas galopantes e brancas
o maior orgasmo inacabável
que pode conter o universo

quanto mais atento
no marulho deste mar
mais construo a certeza
de ter sempre que voltar

juro que estou imobilizada
sobre as escadas
quem leva os meus olhos
a viajar
entre o assombro dos palacetes
o damasco do horizonte
e as ondas tão brancas
do mar

entre a brancura 
                            desta praia

e a falésia 
                            azul morena

perco o limite
                            entre mim

e o sonho
                            eis-me serena 

hoje houve mais ondas
no teu corpo
que no mar
depois a espuma
branca e leve
que me deixou a levitar

é ainda julho
e o tempo acende-se
no seio das bungavílias
virá agosto
e ele arderá
no ventre das papoilas

de novo a falésia me surpreende
está hoje mais vincada e proeminente
dela ao infinito deve ser um murmúrio
de mim a ela um grito consistente

hoje fui atingida pela raiva
que sobrevoa as coisas materiais
mas assim que me entreguei ao mar
vi-a sumir-se a pique nos limos e corais
depois nem raiva nem vazio
dona de mim restaurada e inteira
contemplei o mar horas a fio

um tom de azul
o tecto do céu
outro tom de azul
o chão do mar

equilíbrio de asas
não sei a qual dos dois
me hei-de entregar

com alguma inquietude
lá fui adormecendo
no barlavento do teu peito

e todo o sono foi perpassado
por um litoral perfeito

quando de madrugada acordei
achei-me numa enseada serena
no sotavento do teu peito

reparo na convergência plena
entre as várias vírgulas da água
e os pacientes parágrafos da areia
verbo de uma convivência sem reticências
num enorme redondel insolúvel
as rochas só as vejo agora
expressivos pontos de admiração
que nos levam as aspas dos olhos
a pendurar-se na grande janela do céu

desprendida dos ponteiros de todos os relógios
alongo-me na observação curiosa e cuidadosa
das vitrinas penduradas na lateralidade da rua

na miscelânea de tantos e variados objectos
retenho a predominância dos tons de azul
a habitar reluzente o interiorismo do vidro

assisto a assimétricos arabescos no ar
numa mistura sórdida entre o real e o irreal
sem que se vislumbre brisa que os conjugue
no terraço do bar começam a desferir-se
arrepios de rugidos insustentáveis
e brechas de remorsos sem matriz definida

adentro-me no mar e tudo se volve apenas
no imperceptível estertor de um insecto

uma curta caminhada
orquestrada pela brisa

breve viagem de bote
orquestrada pela ria

alguns fleumáticos passos
orquestrados pela areia

um mergulho no mar raso
orquestrado pelo céu

a areia é o leito fixo
onde são limitados os movimentos
o mar é rede baloiço
onde são permitidos os excessos

e supreendem-me os teus olhos
suspensos nos meus seios
como se eu tivesse um abismo
debruçado na cintura

a primavera que há muito
vou conhecendo nos teus olhos
ontem não era a mesma
prenunciava
uma ausência de flores
um manto solitário de nevoeiro
ou a eminência de uma chuva qualquer

só na areia húmida
se podem escrever todos os crimes
o mar é de todos o melhor alibi

porque havia
as pedras juntas
na tentativa de muro
lembrar-me outono
e da pequena casa
o alpendre antigo
habitado de ninhos
lembrar-me inverno
se era julho
ainda uma criança
de idade diminuta
a ensaiar palavras e sorrisos

depois da maresia
só um barco no escuro
e uma casa abandonada
estância surrealista
na imensa solidão
que a rodeava

eram as ondas extensas de altura
e sucediam-se intensas em galope
qual cavalo indomado no tempo
a estremecer todas as rotas

são agora largas de brandura
e sucedem-se a intervalos regulares
qual ave alongada que ensaia
os rituais dos acordes da aurora

choveu dentro da noite
no terraço do verão
e fez lembrar outono
ou um sótão escancarado
mas agora a manhã clara
sugere o reflexo de uma nebulosa
nos rastos do orvalho

encontro hoje a água
em desmesurados saltos
como se tentasse transpor
as amarras de um pesadelo

a praia hoje grande pauta aberta
a espaços perpassada por um vento
prestes tão prestes a adormecer
e com a leveza do ar e da espuma
quase me absorvia totalmente
e domava o que em mim existe
de inegavelmente indomável
de súbito atravessou-me o solfejo espinho
e nem na memória a praia resiste
emerge do meu lado indomável
o pensamento que ergue o poema
“havia uma árvore à beira do caminho”

num extremo vejo casas
noutro extremo infinito
no meio dos extremos espaço
para o extremo do sol
a pique no extremo do mar
e para o extremo da minha sombra
inclinada no extremo do chão

só tenho olhos agora
para o movimento verosímil das rochas
onde a água alastra desenhos
que não compreendo
mas pressinto as vogais das rochas
entre o movimento e os desenhos
mais abertas e inelutáveis

era a extensão da tua pele
sobre a brancura da minha pele
e adornava-se a minha pele
do suor da tua pele
enquanto suspirava a tua pele
brilhava a minha pele

e adormeceste com a tua pele
a desaguar na minha pele

sob o abraço do teu corpo
o fascínio do mar sobre o meu rosto
os olhos desmesuradamente alongados
no azul dos azuis mais intactos
e uma gaivota de rumo abstracto
a braços na proa de um barco
ao longe os vultos inertes das rochas
mas que sei expressivas quando próximas
e uma onda mais longa e feiticeira
grava as nossas sombras sobre a areia

somos agora secretamente cúmplices
eu e toda a fachada deste mar
ele apaga tudo o que na areia escrevo
e eu continuo a escrever pra ele apagar

pensar
pensar nos teus olhos
uma elegia de saudade
e à noite
à noite conjugá-la
sem ter pressa nenhuma

deposito-me no teu corpo
na sombra dos segredos
e não há margens a medir
o compacto que somos

procuro a tua alma
ao fundo dos segredos
e há uma luz inapagável
a rodar nos nossos nomes

aqui cada vez que a insónia me visita
não me debato   e entrego os meus braços
a construir de fundo um navio
mesmo que por aqui ele nunca passe

algo me diz que nesta praia
já houve outra existência
aqui onde me encontro
respirou concerteza um anfiteatro
sempre que no corredor da noite
me levo a passear neste espaço
sinto que ainda se ouve o ponto

olhos olhos olhos
olhos de água
e a água espelho de cristal
olhos de céu
e o céu surdina de catarse
olhos de sol
e o sol candelabro de alogénio
olhos de areia
e a areia leito de sumaúma
olhos de falésia
e a falésia vulto hipnótico

e que minúsculos os meus olhos
perante a profusão destes
olhos olhos olhos

em todos os espaços possíveis
procurei a lua para meu espelho

e quando finalmente a descobri
estava escancarada nos teus olhos

em fim de verão um arco-íris
e o teu corpo sob a chuva
da água que contorna as tuas mãos
não sei se direi líquido ou direi luva

e por onde no teu corpo
a água escorre pára e brilha
há uma qualquer coisa
de bosque ou de ilha

em leveza sonda-me a areia
em simetria acena-me o mar
mas hoje o encontro inevitável
é entre mim e a falésia

no espaço da lisura desta praia
há uma surdina de búzios escondidos
a envolver a areia hoje mais morena
e pouco a pouco vou-me sentindo
por fora levemente surpresa e colorida
por dentro tepidamente serena e branca

algo me chama
no centro desta praia
voz fragrância
azul silêncio
talvez tudo isto
mais o que não alcança
a minha imperfeição

é março
mas há nos teus olhos
como um sopro
uma claridade de abril
a procurar uma sombra
no meu corpo

as ondas lembram-me
celeridade e brandura
a onda rápida
lembra-me a volúpia
a onda lenta
lembra-me a ternura

está hoje o céu tão concentrado
que tem uma só cor a prometida
está hoje o mar cheio de música
como se só habitado por uma lira

febre ou fissura aquele tão estranho frio
que por quanto tempo quase me inanimava
e aturdida pensar que podia ser eu a seguir
a habitar fora de mim a ambulância que passava

azul    azul    azul
como se fosse o reacender
do ancestral big bang

bebo a desmesura
das searas quentes
seiva bastante
para diluir a pique
a minha solidão

o rio é o rumor
que rola em retentivas
o mar é o marulho
que excede as enseadas
eu sou o ermo estro
que remorde as reentrâncias

recentes reticências
do rastro de uma lágrima
que dormente rolou
num redondel da areia
lágrima branca-ebúrnea
de perca ou de permissa
de rota transviada
de vertigem ou brecha
de amor ou desamor

mas o rastro irregular respira
nos poros permeáveis da penumbra

sinto-me e sento-me
sem desvio ou desalinho
na sala da harmonia
efeito ou causa
da projecção profusa
da brancura da cal

o leque da longa marginal
alonga-se ainda mais
e acendem-se luzes flutuantes
quando ao cair da noite
de mãos dadas e ébrios de ternura
passo a passo passam os amantes

se eu percebesse alguma coisa
do jogo e dos conluios da lota
teria devolvido ao mar todos os peixes
que nos olhos renegavam a morte

junto conchas
                        e lembro coxas

junto verdes
                        e lembro ventres

junto espuma
                        e lembro esperma

cerrai-vos olhos meus
ante esta bruma estática
todo o sentir é meu
mas perde-se o pensar
olhar de frente a bruma
faz-me não ser capaz
de exumar os fantasmas

domino as ondas
domino as dunas
sou uma guerreira
serpente e hidra
do fundo ao alto

acordo e sou
ponto minúsculo
que ondas e dunas
no tempo de nada
podem destruir