A Romaria de Nossa Senhora da Saúde em Terras de Cambra (V – VI)

A Romaria de Nossa Senhora da Saúde em Terras de Cambra (V – VI)
Manuel de Almeida

(in, Voz de Cambra nº 708 de 1 de Fevereiro de 2001)          

PARTE V

2.6. Tradições e alguns acontecimentos.

Embora imbuídos do espírito religioso, os romeiros que se dirigiam ao Santuário em 14 e 15 de Agosto iam também à procura de convívio e animação. Todos os relatos conhecidos escritos ou alicerçados na lenda disso nos dão conta.

É verdade que as autoridades eclesiásticas sempre pugnaram pela separação entre o religioso e o profano, mas quase sempre sem resultados práticos.

Ia-se à romaria para orar, para ver  e ser visto, divertir e comerciar. Fórmula esta que levou ao sucesso da festividade e doutras congéneres na região e no país e de que o relato seguinte, escrito, nos inícios dos anos quarenta, pela pena de Ferreira de Castro(1), natural de Ossela,  dá uma síntese:

           “ Para a festa que em sua honra se celebra todos os anos, começa a passar aqui, na madrugada de 14 de Agosto verdadeiras multidões

                                                                      e

Chegados à ermida, não entram, pois já a viram da primeira vez que ali vieram e a festa é mais pagã que outra coisa.

O píncaro está cheio de bandeirolas, de vendedores de quinquilharias coloridas, de frutas estivais, de chitas de mulheres; não há maior cromatismo em parte alguma, nem bulício maior

                                                          Ou ainda

Bailam, cantam, suam e comem durante o dia inteiro

Também Ludovina Frias de Matos(2), via a festa, no ano de 1932, do seguinte modo:

O arraial redobra de animação. O povo folga, canta, ri e bebe, mas ordeiramente, com ar de boa pessoa, que não quer incomodar ninguém.

A mocidade forma rodas. Predomina o vira valseado. As raparigas descalças têm os pés da côr do carvão e as faces da cor das brasas. Não que o sol escalda e é talvez por isso que os rapazes não tiram o chapéu. Andam aos saltinhos muito agarrados

Das tradições que mais marcaram os dois últimos séculos da Romaria destacam-se: os enterros e os cantadores.

OS ENTERROS

Aquilo que mais chocava alguns romeiros era o costume de pagar promessas fazendo-se transportar, à volta da ermida,  dentro de um caixão.  

Conhecemos vários escritos sobre tal tradição, além de que as pessoas de muita idade ainda o recordam.

Vejamos, no entanto, dois relatos da época, um da autoria de Ludovina Frias de Matos e outro de José Tavares:

a) LUDOVINA FRIAS DE MATOS(3).

Vejo ainda qualquer coisa de inédito (…) e de estúpido. Deitado num caixão, rosto coberto pelo sudário, vai um devoto conduzido por quatro labregos. Uma promessa também. E dali a pouco passa outro enterro. Mas o caixão vai mal cheio. (…) é o corpinho duma criança que serve agora, para a revoltante representação. A lúgrube cena indispõe e irrita

b) JOSÉ TAVARES(4).

Mas uma tradição que ali se mantém e nos não consta exista em qualquer outra romaria são os ‘enterros. Encostados ao santuário, pelo menos dois caixões, sem tampa, esperam que algum romeiro os alugue e utilize.

Acompanhado de pessoas de família ou da sua amizade, o que fez a promessa de ir por morto no caixão dirige-se para o cruzeiro, e aí se organiza originalíssimo cortejo.

Velho, velha, rapaz ou rapariga coloca-se dentro da urna, previamente posta ao alto por algum dos quatro ‘pegadores’. Caixão e paciente são colocados na posição normal, um dos circunstantes cobre o romeiro com um lençol e o ‘enterro’ segue em direcção à capela.

Atrás, vão os companheiros e companheiras do peregrino; e, se este tem posses, uma das bandas de música fecha o cortejo, tocando uma marcha fúnebre.

Chegados ao santuário, é de uso dar uma ou mais voltas, consoante a promessa, à roda dele. Assistimos várias vezes a este macabro espectáculo, bem pouco próprio do nosso tempo, que tanto origina cenas desagradáveis, como provoca risos da assistência.

Com efeito, romeiros há, principalmente raparigas mais impressionáveis, que chegam a perder os sentidos na ocasião em que os amortalham para a fúnebre viagem; e o cómico é inevitável, quando acontece ser o caixão pequeno demais para as dimensões do corpo“.

BIBLIOGRAFIA:

(1) – FERREIRA DE CASTRO, por nós transcrito no nº 496 do Jornal a Voz de Cambra de 91.12.01.

– Idem FERREIRA, A. Martins – obra de 1942.

– Ver também o relato antes transcrito da autoria de José Tavares.

– Idem Raul Conde no Jornal de Estarreja nº 2643 de 24.7.1942.  Trata-se de uma viagem feita pelo autor a partir do rio Teixeira, passando por Junqueira, Irijó e chegada ao Santuário.

Parece que terá publicado um livro com o título “MULHERES E PANORAMAS”, que inclui  a descrição da viagem, entre outras.

(2) e (3) – In, Jornal de Cambra nº 57 de 4.9.1932.

(4) – TAVARES, José – artigo já citado. Ano de 1946.
– MARQUES, Maria Clara de Paiva Vide – obra citada, pág. 96.

– Também nós temos indicação de que na festa de Nossa Senhora da Ouvida em Viadal este modo de pagar promessas foi exercido, por mais do que uma vez.

Vide a Voz de Cambra nº 643 de 1.4.1998.

                           

PARTE VI

OS CANTADORES, OS POETAS  E SUAS QUADRAS.

Estão publicadas e são conhecidas várias quadras alusivas à Romaria. Destas não será demais destacar as cento e vinte e duas que são atribuídas ao Padre José Alves Pereira da Fonseca, o Lamego e que paroquiou a igreja de Ossela de 1841 a 1845.

Basta lê-las para se ficar com a ideia de como era a festividade em meados do século XIX, quer do ponto de vista profano quer religioso. Eis algumas(1):

A catorze de Agosto
Caminhos e veredas
Cobertos de gentes,
O povo às medas                         

Os homens trajam carapuças;
As mulheres chapéus vareiros;
Raparigas saias curtas;
São da Marinha, os romeiros;

Olha em torno da capela
O fervor da devoção:
Penitentes e romeiros
De joelhos pelo chão.

As violas não descansam;
As modas são variadas:
“cana verde”, “Luisínha”,
“batetuco”, chulas cantadas.

Vão ao cruzeiro de além
Romeiros de Ossela esperar;
São danças e costumes,
Que os de Ossela hão-de pagar.

Ao findar a festa teve
Uma bela procissão:
Dois andores, os mais formosos,
Que encantam o coração.

Lá marcham para S. Roque,
Outra grande romaria,
Que se faz sempre em seguida,
Da Virgem Santa Maria.(2)

Também nós recolhemos em Viadal as seguintes quadras sobre Nossa Senhora da Saúde e a sua Romaria:

                                                I

                       A Senhora da Saúde prometeu,
                       Prometeu e há-de dar;
                       Ramalhos pr’a estar à sombra,
                       Rapazes para namorar

                                                II

                       A Senhora da Saúde,
                       Tem vinte e quatro  janelas,
                       Mais abaixo, mais acima,
                       Meu amor mora numa delas.

                                                III

                       A Senhora da Saúde
                       No alto de Castelões,
                       Ela onde está bem vê,
                       No mar as embarcações.

                                    IV

                       A Senhora da Saúde,
                       No caminho pedras tem.
                       Hei-de mandar tirá-las,
                       Pr’a semana que vem.

                                    V

                      A Senhora da Saúde,
                      Tem um filho serrador.
                      Pr’a serrar madeira,
                      Para o altar do Senhor.

 Dos cantadores que passaram pela Romaria, o mais conhecido é Marques Sardinha. Apesar de ter falecido em 1941, há ainda muitos habitantes idosos que se lembram dele e das suas quadras.

Ele e a sua companheira de cantigas, a Maria Barbuda, foram e são uma lenda, sobretudo nas terras que os viram nascer Avanca e Estarreja.

Conhecemos  a sua biografia pela obra de João Sarabando(3) que os descreve do seguinte modo:

MARQUES SARDINHA(4)

Nasceu em Sardinha, Avanca em 2 de Abril de 1859. Faleceu solteiro em 1 de Abril de 1941.  Mal sabia ler. Usava umas grandes barbas como a fotografia ao lado o demonstra. Cantou várias vezes para a família real portuguesa e seus convidados.

 MARIA BARBUDA

Nasceu em Beduído, Estarreja em 16 de Setembro de 1869. Chamava-se Maria Marques de Sousa. Faleceu em 31 de Dezembro de 1946. Era analfabeta. Tinha umas grandes barbas. Usava lenço apertado na cabeça e grande cordão em ouro.

Também João do Crasto (5) conheceu Marques Sardinha na Romaria de Nossa Senhora da Saúde. Eis a sua descrição:

             “Estou a lembrar-me do cantador Marques Sardinha, com a sua longa barba branca de profeta que, apesar da sua provecta idade, despicava em desgarrada com a Margarida Reis e a Barbuda, em jeito que o povo muito apreciava

A presença destes cantadores em festa, romaria ou acontecimento social atraía multidões.

A Romaria de Nossa Senhora da Saúde da Serra era-lhes familiar, como se constata pelas quadras publicadas por João Sarabando, na obra que temos vindo a seguir e pela recolha feita em Viadal:

a) Na Senhora da Saúde

Ela: – rapariga nova

                 O amor dum homem velho,
                 Tola é quem o cobiça.
                 É cumo um cântaro furado,
                 Cuma rolha de cortiça.

Ele:

                 Eu tenho um cavalo branco,
                 Que o comprei em Viseu.
                 Cântaro furado és tu,
                 A rolha tenho-a eu.

Ela: – Escandalizada.

                 A bicha, pelo panasco,
                 Corre que desaparece;
                 Quem dá falas a marotos,
                 Grande castigo merece.

Ele:

                 A bicha pelo panasco,
                 Corre e não deixa rasto.
                 Tu ficas co teu cu roto,
                 Eu com o meu pau gasto.

São dele ainda mais duas quadras/cantigas:

A primeira terá sido proferida em Cambra, para um homem que fazia panelas e trazia a mulher pobremente vestida:

                 Assim a fazer panelas,
                 Deves ter muito dinheiro;
                 E trazes a mulher descalça,
                 Ó meu pobre paneleiro.

A segunda tínhamo-la registada em Viadal, numa versão um pouco diferente e demonstra o seu espírito brejeiro, embora já em final de vida.

                 Meninas amai o Marques,
                 Que o Marques também vos ama.
                 O Marques por ser velhinho,
                 Aos saltinhos vai pr’a cama.(6)

b) Recolha de quadra atribuída a Marques Sardinha e ouvida a vários habitantes de Viadal.

Aí pelos anos vinte, Marques Sardinha terá estado na Calvela e cantou ao desafio com uma mulher, parece que a “Tia Joaquina”.  Esta, ter-lhe-à chamado filho da p…., ao que ele respondeu:

                       A mãe que nos pariu,
                       É mãe de nós ambos.
                       És como a galinha vaidosa,
                       Que se abaixa a todos os frangos.

UM OUTRO ACONTECIMENTO NA FESTA AÍ PELOS ANOS 30

Um indivíduo  de Vilar, freguesia de Cepelos era dado a farras. Tinha a profissão de canastreiro e assim era conhecido.  Na Senhora da Saúde formou uma roda. Pediu que viesse um cantador ou cantadeira para o auxiliar.

Nisto, apareceu uma da beira-mar que lhe cantou:

                       Ela:

                       Menino da calça branca,
                       Há-de ser o meu amor.
                       Ainda não tem barba na cara,
                       Quem o dá por fiador?

                                        (Chamou-lhe de canalha)

                       Ele:                    

                       Eu sou o primeiro homem,
                       Que nasci duma mulher.
                       Tenho dentro das calças,
                       O fiador que ela quer.

NOSSA SENHORA DA SAÚDE E AS COLHEITAS

Há em Viadal quem acredite que as cebolas não se estragam se forem apanhadas no primeiro dia de Agosto, isto é, quinze dias antes da festa de Nossa Senhora da Saúde. É, por isso, comum ver-se réstias de cebolas a apanharem sol nesse dia.

Inquirido o informante de cerca de 60 anos, disse-nos:

O costume é antigo e eu mantenho-o. Se não fizer bem, mal também não faz  nenhum

BIBLIOGRAFIA:

(1) – Quadras inicialmente publicadas pelo Padre Joaquim Manuel Tavares, na obra que temos vindo a seguir e transcritas por:

a) MARQUES, Maria Clara de Paiva Vide, obra várias vezes citada. Ano de 1993.
b) TAVARES, José – Tradições do Distrito de Aveiro. Arquivo do Distrito de Aveiro, volume XXX II. Ano de 1966.

Este autor clarifica, contudo,  alguns aspectos das quadras publicadas pelo Padre Joaquim Manuel Tavares  e questiona a sua autoria. Baseou-se em dois manuscritos, datados de 1846, ano em que houve na Romaria um assassinato, abundantemente descrito nas referidas quadras.

– Temos também registadas várias quadras sobre a Romaria, a saber:

1) Do Grupo de Cantares de Manhouce, numa “cassete” editada em 1990.
2) De Abrantino, in Voz de Cambra nº 585 de 1/10/1995.
3) De João do Crasto e Marilena Sousa, in Voz de Cambra nº 607 de 15/9/1996.
(2) –  Nota-se por esta quadra a importância que as romarias tinham para as gentes do século XIX.

Acabava uma e pensava-se logo na outra. Era assim um pouco por todo o país, inclusive em Lisboa.

Alcançáveis a pé e num só dia ficaram famosas as do Senhor Roubado, junto a Odivelas, a da Senhora da Rocha, junto a Carnaxide/Linda-à-Velha e a do Senhor da Serra em Belas. Santuário este que hoje em dia se encontra em ruínas.

Nas proximidades de Cambra e lá para as bandas do mar destacam-se a de S. Paio da Torreira e a do Senhor da Pedra.

Terá por isso interesse deixar aqui algumas quadras, alusivas a estas festividades recolhidas em Viadal.

               

AO S. PAIO DA TORREIRA

S. Paio da Torreira,
Com tamanha bebedeira,
Foi tomar banho à praia.
Deu-lhe tanta piela,

Que ao vestir da farpela,
Já chamava à calça de saia.
Quem tem capa sempre escapa,
E eu também tenho um capote,

E as irmãs da caridade,
São bonitas bem o sabem,
E são lindas como a cela (?),
Que lhe fez o padre santo,
Na sacristia a um canto,
Com o bico duma sobela.

Nota: – Talvez incompleta.

               AO SENHOR DA PEDRA

               Vamos ao Senhor da Pedra,
               Que o meu irmão já lá foi.
               Botar a mão,
               Na patada do boi.

               Óh! Senhor da Pedra,
               Óh! Senhor da areia.
               Queria lá entrar dentro,
               A capela estava cheia.

(3) – SARABANDO, João – MARQUES SARDINHA E MARIA BARBUDA  AO

       DESAFIO. Pág. 51 e 78.

(4) – O Jornal de Cambra nº 148 de 20/2/1935 publicou fotos de Marques

       Sardinha, Maria Barbuda e Margarida Reis.

       Idem nº 357 de 28/4/1941.

(5) – . In, Voz de Cambra nº 513 de 92.09.01.

(6) – A versão que havíamos recolhido em Viadal, é por certo uma derivação da de Marques Sardinha e consta do seguinte:

                       Meninas amai o manco,
                       Que o manco também vos ama.
                       Manquinho como é,
                       Vai aos saltinhos pr’a cama.

Manuel de Almeida

(Parte VII)