Esse bocadinho de tarde cinzenta


Ela não sabia mas a vida havia-lhe ensinado naturalmente que
os mais belos poemas se fazem com gestos e palavras simples.

Que os nossos corpos ainda que distantes no tempo se uniam
como a clara e a gema.

Fora da jaula com a ponte ao longe sentia-se voar e dizia que
o ar fresco da liberdade acendia nela um poderoso desejo.

Nos corredores da casa o céu abria-se ao vê-la frente ao
espelho provando a blusa que lhe trouxera de fora.

Ao sentir a sua pele macia coberta apenas pela leve blusa
que vestia frente ao espelho ficava enraivecido por alguém
lhe pôr as mãos em cima uma vida inteira.

Sentir nos dedos a maciez do seu sexo era um poema com
versos de fogo.

Para lá da beleza a transparente ternura da infelicidade
prendia cada vez mais aos olhos aquele corpo de sonho e
magia.

Os seus beijos não tanto pela sensualidade como pela
necessidade de fuga através deles para um qualquer lugar de
paz e segurança tornavam mais dolorosa a hora que viria a
seguir sem ela.

A alegria que tinha ao vê-la entrar era tão grande quanto a
tristeza que sentia ao vê-la sair.

Era como se levasse consigo a sina de não voltar embora
tivesse voltado sempre como uma aparição.

Era como se o mundo caísse ao chão e se partisse e não
houvesse forma de unir os pedaços.

Uma imensa amargura pelo desencontro de idades e de
vidas cerrava os olhos mas a beleza interior daquela mulher
sabia abri-los e agarrar o sol de forma sublime.

Nesse bocadinho de tarde cinzenta só uma alma grande
podia fazer da tristeza e da amargura um acto de amor.