Desencontros por Terras de Santa Luzia

por Aventino Monteiro

Sexta-feira, doze de dezembro de 1973. Como era hábito, e depois do trabalho, andei até tarde na boa-vai-ela.

Primeiro, agarrado aos matraquilhos, no Café Central do Pinheiro Manso, depois uma ida à matiné das nove e depois mais uma passagem pelo Café, desta vez, para jogar à “marimba”, a rebuçados, até ao seu encerramento, sem me preocupar, com o facto de no dia seguinte, ter de me levantar cedo.

Desencontros por Terras de Santa Luzia
Era aqui o Café

Havia o compromisso, de estar nas Baralhas, às sete e meia da manhã, para ir numa excursão, à Santa Luzia, organizado pelo saudoso, “Zé Careca” dos Salgueiros.

Chegado a casa, deitei-me, sem ter a preocupação do despertador, acreditando que acordaria a horas de ir ter às Baralhas, como fora o combinado, com a recente namorada Leonor (e futura esposa, até hoje), e ainda, os meus futuros sogros.

Mas qual quê! Morfeu, de braço dado com a “galderice”, tiveram outros planos para mim.

Quando acordei, já o sol ia alto. Saí da cama dum salto, vesti-me rapidamente e, na azáfama, deitei a mão a uma camisola de meia gola, que estava estendia no varal, junto à porta da entrada, casaca de bombazina por cima e ala em direcção às Baralhas.

No meu íntimo (erradamente), tinha a secreta esperança, que alguém tivesse ficado para trás (palerma) à minha espera. Chegado ao local combinado, e como seria de esperar, ninguém!

Fazia muito tempo que a camioneta, mais a namorada e os pais, tinham partido sem mim.

Fiquei com um dilema: fico por aqui, desiludindo a ainda recente namorada e os pais (mais a namorada), ou tentar por outras vias, uma outra forma, de resolver a situação.

Estava eu, junto à paragem dos autocarros, a magicar numa outra solução, quando parou um autocarro da Rodoviária.

Era a carreira das dez, com destino a Oliveira de Azeméis. Entrei, sem saber muito bem, porquê ou para quê.

Só sabia que, estando em Oliveira, estava um pouco mais perto.

Chegado à estação, dirigi-me ao balcão, fiz algumas perguntas, indicaram-me o local de onde partia uma carreira com destino a São João da Madeira.

Só tinha de dizer ao cobrador, para emitir um bilhete até à Ponte das Fuzeiras, depois teria de fazer o resto do percurso a pé.

Sabia lá onde era a Ponte das Fuzeiras…

Estava eu com a cabeça às voltas, sobre o acontecido, quando uma voz me acorda da letargia: – “Ó amigo, é aqui que tem de descer!”

Olhei à minha volta e pensei: como é que me fui meter nesta alhada?
E quando lá chegar? Se chegar…
Como serei recebido?

Estava com a mente numa confusão e num turbilhão, atravessei a estrada e vejo uma placa, com a indicação, Cucujães e Seminário.

Desencontros por Terras de Santa Luzia

Como tinha lido em tempos, numa publicação dos Missionários, sabia que a Santa Luzia, ficava no Couto de Cucujães. Fiquei um pouco mais descansado.

O dia amanheceu limpo, mas muito frio, tinha caído uma camada de geada, daquelas que racham as “beiças” e nos penetram té ao tutano.

No meu enregelado cérebro, acendeu-se uma luzinha. Estava no bom caminho e lá fui eu estrada acima, sem saber bem para onde me dirigia.

Um pouco à frente, seguia uma figura masculina, que pela indumentária, tinha aspecto de romeiro, logo, procurava o mesmo que eu.

Estuguei o passo e coloquei-me a seu lado, abordei-o com cautela, só depois de conquistar a sua confiança, me atrevi a fazer-lhe algumas perguntas.

Amavelmente, o senhor, informou-me que estava a caminho da Santa Luzia, para cumprir uma promessa.

Imediatamente, senti que estava safo, pelo menos, por agora. Caminhamos durante bastante tempo e, de repente, diz-me ele: “- Amigo, estamos no arraial.”

Agradeci ao homem, como era minha obrigação, e lá fui à procura da namorada.

Não demorou muito tempo a encontrar, sabendo eu que a mãe rondaria e, por algum tempo, o Santuário.

Passados alguns minutos, dei de caras com a namorada. O seu rosto iluminou-se, o dos pais, nem por isso. Devem ter pensado: “bonito “artista” a filha foi arranjar…”

Ao chegar junto dela, senti no seu olhar alguma estranheza. Olha para mim fixamente e esboça um sorriso, ou melhor, um rasgado sorriso, (coisa que agora, raramente faz).

Com um gesto disfarçado, aponta para o meu pescoço e diz baixinho:
– O que é que tens no pescoço?
– Como assim? O que é que tenho no pescoço? Não tenho nada, respondo eu!

Mas, na dúvida, abeiro-me dum autocarro, olho-me ao espelho e não acredito no que estou a ver: o meu pescoço estava da cor da pele do “Grande Chefe, Alce Veloz”, totalmente avermelhado.

Só então me apercebi que, na ânsia de me apressar, tinha vestido a camisola, com a gola ainda molhada, o que tingiu de vermelho bordeaux, todo o meu pescoço.

Levantei a gola da casaca, disfarçando o melhor que pude e fomos almoçar.

A tarde ia adiantada quando terminamos de aliviar a cesta do farnel. Senti que a Natureza chamava por mim.

Depois de tantas andanças a minha bexiga estava a rebentar. Informei os presentes que ia fazer o que ninguém podia fazer por mim.

Andei mais alguns minutos e nada. O local para fazer o que tinha (inevitavelmente) de ser feito, não havia maneira de aparecer.

Gente a perder de vista, barracas por todo o lado, autocarros por todo o lado, romeiros (alguns na minha situação) por todo o lado.

Andei mais alguns minutos e pensei: onde raio, vou encontrar o local ideal?

Caminhei mais um pouco e finalmente, lá o encontrei, umas leirotas, com combros, à altura da minha cintura.

Olhei para um lado, para o outro também, com cara de quem estava a roubar, abro o fecho…, bem, o resto, vocês já sabem, abstenho-me dos pormenores.

Fiz o que tinha a fazer, duas “abanadelas” (lá estou eu outra vez), e toca a andar, para o pé da namorada.

Estava eu em plena estrada, quando senti uma das pernas das calças mais pesada, tecido de fazenda grossa, calças à boca de sino (estávamos em 1973).

Olho para baixo e, para meu espanto, o que tinha esvaziado da bexiga, veio direitinho para as calças.

Voltei um pouco atrás (ao local do “crime”) para tentar perceber o que tinha acontecido.

Como não vi nada no chão, entendi o que aconteceu: sem dar conta, tinha feito xixi em cima de uma folha de sapo, que serviu de caleira para a perna das calças. Tinha “aproveitado” tudo, nem uma gota, foi “desperdiçada”, bonito trabalho, sim senhor…

Encabulado, dirigi-me ao encontro da namorada, fazendo figas, para que na confusão, ninguém reparasse em tal figura. É que depois do que aconteceu, para além de “vermelhão”, agora, também era “mijão”.

Apesar de me encontrar em Terras de Santa Luzia, praguejei que nem um carroceiro (sem menosprezo, para os mesmos).

Quando encontrei a namorada, contei-lhe o sucedido, como seria de esperar.

Deu uma gargalhada (eu faria o mesmo) e confidenciou-me num sussurro, apesar de “vermelhão” e “mijão” gosto de ti na mesma.

Assim terminou um dia, que estava programado para ser perfeito. Agora que o vejo à distancia de quarenta e sete anos, até foi.

Envergonhei-me, envergonhei a recente namorada, os pais, faltei ao horário da partida do autocarro, fiquei com a pele do pescoço vermelha, e, como se não bastasse, mijei-me todo. Bonito serviço, sim senhora!

Lordelo, 27/12/2020
Aventino Monteiro (latoeiro, Fazedor de Latas)