Rui Leite
por Tiago Fernandes
Carta ao Rui
De tantas lições que aprendi com o Rui – foram tantas e tão importantes – ficaram por aprender muitas, mas a que me faz falta hoje é só uma. Rui, como é que se lida com a perda de um gigante? Como é que se aceita que um colosso, um pilar nuclear da nossa vida é, afinal, efémero?
Nas últimas horas, tenho-me debatido com esta lição. Como sempre, penso em ligar ao Rui, o amigo de todas as horas, uma característica que todos os que são amigos do Rui sabem: basta ligar, e o Rui está lá.
O Rui é assim: reto, sério, honrado, nobre, vertical, austero quando necessário, com a imperativa dose de acutilância, mas sempre pesando cada palavra. E é também, claro, amigo, bondoso, orgulhoso, sorridente e um excelente contador de histórias.
Mas o Rui é também o portador de um legado do pai e do avô, figuras e mestres que sempre orientaram a sua vida. E é, claro, um fiel escudeiro da Matriarca da família, a Dona Olanda.
É um sobrinho dedicado à Luisinha e à Manecas, com uma ligação forte e inquebrável, e aos primos, ao Pedro e ao Ricardo.
É um irmão que, ainda hoje, mantém um vínculo umbilical à irmã, a Anabela, que, tal como o Rui, se fez um colosso. E a cada feito que atingia, o Rui com todos partilhava, pois as coisas boas, como bem dizia, são para serem partilhadas.
O Rui, claro, transmitiu o legado e criou legado. Com a companheira de uma vida, a Helena, criaram uma família numa verdadeira acepção Católica de família, de valores e princípios excepcionais.
A família do Rui podia confundir alguns dos que o ouviam como se fosse arrogante quando dela falava, quando, na verdade, se tratava de um pai e de um marido que partilhava alegremente o orgulho desmedido, incondicional, o amor infinito que tinha pela Helena, pelo André e pela Diana, mas também pela Joana e pela Maria.
Caramba, Rui, se a todos nós nos custa ver que não vais estar mais aqui, junto a nós, é doloroso só pensar na dor que atinge esta família tão bonita.
É que o Rui é tudo isto. É por isso que, se me pedirem para definir o Rui, não sei. Mas se não me pedirem, sei. Pois, o Rui transcende aquilo que são as limitações linguísticas.
Sei o exato dia em que conheci o Rui, 13 de setembro de 2013, na Biblioteca Municipal de Vale de Cambra. Num gesto à Rui, disse que gostou muito do evento onde esteve e que gostava de continuar a conversar. E foi assim, nesse dia, que conheci um gigante, o Rui Leite.
O Rui Leite, gestor, empresário, dirigente associativo, homem de causas sociais, homem de fé, e servidor público.
Uma carta ao Rui tem que ser justa para com ele, e tenho que admitir quando a escrevo, que ficará sempre tanto por dizer.
O Rui seguiu as pisadas que o seu ADN lhe deu, dedicou uma vida a uma área de negócio que se confunde com Vale de Cambra, os laticínios, concretamente o Leite e o Queijo.
É que o Rui é um dos nomes-maiores da história portuguesa contemporânea do Queijo. Além de historiador nesse tema, o Rui também fez história.
O seu fascínio com este tema foi o que me fez saber que a primeira empresa de Portugal a fazer Queijo, em formato industrial, foi a Martins & Rebello, em 1930, em Vale de Cambra. E logo em 1934, a Martins & Silva, precursora da Lacto Lusa, que viria a surgir em 1940, seguiu-lhe as pisadas, estas últimas ligadas à família do Rui.
Procurou, como sempre lhe dissera o seu Pai, entrar numa fábrica e só de lá sair quando os problemas estivessem tratados. Foi o que fez durante mais de 40 anos, em várias empresas por todo o nosso país.
Esta história, a do Leite e do Queijo, de tal forma ignorada por alguns, foi alvo de uma aula, por ele proferida, na Universidade de Coimbra. E que aula! Foi lá que aprendi, por exemplo, o impacto de Vale de Cambra, por via dos laticínios, no desenvolvimento socioeconómico dos Açores.
É que, o Rui, e já o disse, além de ser um bom contador de histórias, era um exímio guardião-transmissor delas. E quando desafiado a servir Vale de Cambra, fez disso um dos seus objetivos e, claro, cumpriu.
Destaco, Rui, como não podia deixar de ser, o teu contributo no Centro Social e Paroquial de São Pedro de Castelões, cujas pedras se ergueram com o fruto do teu trabalho mas, como fazem os gigantes, era apenas uma missão. E tu, lá estiveste, na retaguarda do Padre Martingo e do Padre Luís, nessa causa.
Durante 4 anos, de 2013 a 2017, serviu Vale de Cambra, como Presidente da Assembleia Municipal, procurou preservar e transmitir a história e reconhecer e homenagear muitos dos que a fizeram, e ainda hoje, fazem. Colocou os cambrenses ao centro, e fez uma ode à cultura e à riqueza da nossa história.
Não podia ser de outra maneira, pois o Rui é sempre assim. Exímio, brilhante, gigante.
Disse-me um dia o Rui que “a maior lixa do mundo é o tempo, pois reduz a pó tudo aquilo que é insignificante”.
O Rui, o meu amigo Rui, o gigante e colossal Rui, um dos pilares da minha vida, dessa lixa não sofrerá, pois os meus filhos e os meus netos saberão quem foi o Rui, e dessa forma, para todo o sempre viverá o Rui. E os filhos e os netos de todos os que o conheceram, estou certo, também o saberão.
O Rui está sempre lá, e estará sempre lá, pois está em nós, e nós estaremos sempre cá para o Rui e para a sua família.
Vale de Cambra, 14 de novembro de 2023
por Adão Cruz
AO AMIGO ENG.º RUI LEITE
Querido Rui
Esperávamos por ti este Natal, nas Figueiras, como sempre aconteceu desde há muitos anos, ao cair da tarde, a fim de bebermos aquele copinho que mais não era do que o selo da nossa longa e profunda amizade.
Não te ver entrar o portão, sorridente e afável, com uma prendinha na mão, vai encher o nosso copinho, não de vinho, mas de lágrimas.
Ver-te partir, assim, é doloroso. Até porque tu não merecias que te levassem desta vida tão aceleradamente. Todos nós te queríamos cá por muito mais tempo.
Sabemos que não nos ouves, mas acreditamos que lá nos confins do Universo, a dor e a saudade fazem eco, revolvendo a memória dos que ainda por cá ficam.
Os nossos sentimentos, em luta contra o difícil e penoso entendimento destas traições da vida, jamais te deixarão cair no esquecimento. Uma memória sólida, luminosa, de alguém que foi pessoa de alto a baixo, pessoa sem etiqueta de preço, pessoa que morre sem nunca ter perdido na vida o carácter, a honra e a dignidade.
A memória de um exemplo de simplicidade, talvez a mais bela das virtudes do ser humano, um exemplo de honestidade, integridade e lealdade em todas as vertentes da vida.
Por isso, estas singelas palavras que aqui te deixamos não são mais do que uma brisa de amargura e saudade, perfumada pela linda e pura amizade que nunca deixaremos morrer contigo.
Adão e Eva
por Manuel Augusto Almeida
O Rui partiu, inesperadamente, mas os amigos não morrem, porque viajam em nós!
O significado da amizade quando a vida nos abraça e a inevitabilidade da morte nos surpreende, devassa-nos de forma abrupta e profunda.
Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um amigo imortal morre.
Não apenas pela perda dos afetos de proximidade, mas também porque dividimos o mesmo tempo histórico, as mesmas lutas e os mesmos ideais. Ou simplesmente por saber que, neste interregno, não podemos dizer mais nada de desinteressante ou mesmo fazer alguma loucura, como qualquer ser humano disponível para desafiar e construir o futuro.
Dele ficaremos só com o que foi grande, mas mesmo os pequenos feitos terão de ser relevantes para merecer permanecer na memória.
Simultaneamente a morte, na sua condição humana, dá-nos o resultado da nossa condição de vida. Esta é a prova de fogo, dos sentimentos que nos moldam no percurso desta caminhada.
Aos que partem, que amamos e que nos amam, parte também um pouco de nós, porque levam com eles o seu olhar sobre nós, que é único.
A memória torna-se biografia, quando não podemos mais compartilhar a mesma época com quem fez do nosso mundo o que ele é.
Como dizias Rui a hora de ser feliz é sempre agora!
Nestas últimas horas, o sorriso, os afetos, a alegria dos encontros com que celebrávamos a amizade continua ali, intermitente, sussurrando para não esquecer-mos de viver.
Até já amigo.
Eu nada te digo com palavras. Estou vazio e a transbordar de ti…
JMRuas