Estava-se perto do meio dia do solstício de verão, no dia de S. João, e a estranha procissão ofegava sob o calor abrasador do sol. À frente ia o pároco da freguesia de Cepelos, em Vale de Cambra.
Era seguido por um conjunto de sete homens, com ar estrangeiro, com roupa pouco adequada ao clima da região.
Logo atrás ia um grupo de homens da freguesia, a conduzir um conjunto de mulas carregadas com equipamento fotográfico, mas com muitos alforges vazios.
Por fim, um pouco mais afastado, seguia uma boa parte da população da freguesia, curiosa, a ver no que aquilo ia dar.
Os rumores eram muitos, quase todos eles, de uma forma ou outra, mencionavam um tesouro.
Tudo começara em 1929. Luigi, da biblioteca do Vaticano, membro do Institut International d’Anthropologie (IIA), participante assíduo no Congrès International d’Anthropologie et d’Archéologie Préhistoriques (CIAAP), descodificou, num manuscrito antigo, a descrição de um tesouro escondido num outeiro em Portugal em Vale de Cambra.
A descrição estava propositadamente incompleta, não identificando a localização precisa do outeiro.
A chave para se ter acesso a esse tesouro seria um breviário bracarense que estaria na posse do cónego Soeiro.
Luigi achou a informação escassa, mas, por coincidência, o 4º encontro do IIA e o 15º CIAAP iam, em 1930, pela primeira vez, ser realizados em conjunto em Portugal, no Porto e em Coimbra.
Isso justificava uma ida a Portugal. Luigi chegou mais cedo de modo a ter tempo de fazer a viagem até Braga onde tinha combinado encontrar-se com o cónego Soeiro.
Pediu emprestado o breviário, e dele tentou inferir o que tinha de ser feito, mas uma parte do puzzle e a localização do outeiro continuavam a escapar-lhe. Pagou para que lhe fizessem uma cópia da parte do breviário que lhe interessava e foi assistir ao congresso.
A seguir a uma sessão especialmente monótona, em que se sentira começar a dormitar, ouviu anunciar que a próxima comunicação, da autoria de Alberto Souto, dizia respeito a um outeiro de Vale de Cambra, o Outeiro dos Riscos, que pela primeira vez ia ser apresentado à comunidade científica.
Com os sentidos completamente despertos Luigi ouviu a comunicação e de repente fez-se luz, já sabia o que tinha de fazer.
Regressou a Itália, à espera do momento certo, o solstício de verão. Porém, um problema grave de saúde manteve-o em Itália durante uma dezena de anos, demasiado fraco para viajar.
Quando se sentiu melhor começou a planear a viagem, sabendo que seria bom disfarçar o seu verdadeiro objectivo. Entretanto o Outeiro dos Riscos tinha começado a ser conhecido.
Luigi sabia que os editores da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira pretendiam enviar uma comitiva ao Outeiros dos Riscos para fazer o registo fotográfico, para a entrada na enciclopédia. Dado as suas credenciais, foi-lhe fácil oferecer-se para ser ele a realizar esse trabalho.
Deslocou-se de novo a Portugal, desta vez acompanhado por seis homens de confiança, robustos e prontos a tudo, quer fossem ameaças deste mundo quer do outro.
O tesouro estava escondido em Cepelos, no Outeiro dos Riscos. Luigi e a sua equipa tinham chegado uma semana antes, de modo a habituarem-se à região e fazerem o reconhecimento do terreno.
Já tinha ido duas vezes ao Outeiro dos Riscos, uma vez acompanhado por um guia da região, a segunda vez sozinho.
Do topo do outeiro, um afloramento granítico que se situa a meia encosta da vertente ocidental da Serra do Arestal, tinha-se uma vista magnífica tornada ainda mais surpreendente ao pôr-do-sol.
Podia-se observar a aridez de São Pedro Velho, lá no alto da Serra da Freita, a Frecha da Mizarela, a queda de água do rio Caima, e o vale fértil onde se juntam os rios Vigues e Caima.Finalmente, continuando a descer o olhar para oeste, a ria e o mar.
O guia tinha-lhe contado a história das marcas no outeiro, explicando-lhe que as marcas tinham sido feitas por uma moura encantada, e que no interior se encontrava um tesouro, com um pote de ouro, protegido por grades também de ouro. Luigi ouviu em silêncio. Sabia que não era bem assim.
O manuscrito do Vaticano falava num povo robusto, de pequena estatura, descendente de celtas, visigodos, gregos e mouros, que vivia da guerra e se tinha convertido ao cristianismo.
Tinham recolhido um grande tesouro, que tinham enterrado. Marcaram na rocha do Outeiro dos Riscos uma parte da chave para a sua localização, o restante tinha sido confiado ao manuscrito que um pároco tinha feito chegar ao Vaticano, e que tinha ido parar à biblioteca, sem que antes de Luigi alguém se tivesse apercebido da sua importância, até porque era também necessário acesso ao breviário bracarense.
A face do penedo do Outeiro dos Riscos, virada a este, onde estavam as marcas, encerrava um anfiteatro natural, de domínio visual muito limitado. Luigi notou que a superfície decorada, parecia servir como uma espécie de pano de fundo ou palco a este anfiteatro.
As marcas no outeiro eram exclusivamente geométricas, dominando as combinações circulares, particularmente conjuntos de círculos concêntricos e algumas covinhas.
Ao longo do dia, a luz rasante do sol ia apagando e iluminando sucessivamente os grupos de círculos concêntricos.
Luigi tinha observado, entre outras marcas, grupos de três círculos, quatro círculos, composições mais elaboradas com dois e três círculos concêntricos, um círculo simples, com seis apêndices radiais interiores, e um círculo envolvendo duas linhas perpendiculares. A luz do sol varrendo o penedo criava um jogo de luz fascinante.
Aproximava-se a hora. Luigi, seguindo as indicações do manuscrito, indicou ao pároco em que ponto exacto se devia colocar e depois esperaram pacientemente até que, no sino da torre da igreja, soassem as badaladas do meio dia.
O pároco começou a ler em voz pausada o sermão que se encontrava no extracto do breviário bracarense do cónego Soeiro.
Segundo o manuscrito, o texto tinha de ser lido naquele preciso local, ao meio dia do solstício de verão, por um pároco da região, que lesse com o ritmo próprio das pessoas da região, e o pároco tinha de medir exactamente seis pés de altura. Tinham conseguido isso à custa de uns socos e um chapéu.
Quando o pároco chegou ao fim do primeiro capítulo do sermão, Luigi olhou para o grupo de círculos concêntricos, que a extremidade da sombra do pároco nesse instante marcava, e mandou um dos seus homens colocar-se no seu centro.
O pároco continuou a ler e o sol a mover-se no horizonte. Quando chegou ao fim do segundo capítulo do sermão, Luigi fez sinal ao segundo homem para se colocar no centro do grupo de círculos, que nesse momento estava a ser marcado pela sombra do pároco. Agora tinham de esperar pelo fim do sermão.
O pároco terminou dizendo:
– … o cabeço abriu-se e via-se muita coisa lá dentro e o homem que o acompanhava disse ‘Ai que a bengala de ouro é para mim’ e atirou-se para dentro do cabeço que se fechou com um grande estrondo.
Passado um pouco, o cabeço abriu-se de novo e o demónio perguntou:
“Olha lá, tu quere-lo como ele foi ou quere-lo como ele está?“, ao que S. Tiago respondeu “Eu quero-o como ele foi!“, e assim o homem veio conforme estava e o cabeço fechou-se e nunca mais se abriu.
S. Tiago perguntou ao homem que o acompanhava “Olha lá, como é que lá estavas?” e o homem respondeu “Eu estava num canto carregado de ferros, carregado de coisas e não saía de lá mais“.
Com esta frase o pároco terminou. Luigi indicou ao terceiro homem que se dirigisse para o centro do círculo, que nesse momento estava a ser apontado pela sombra do pároco. Agora só tinham de fazer contas.
Segundo o manuscrito, o local que pretendiam encontrava-se a uma profundidade de sete pés no alinhamento da sombra que o pároco projectava neste momento, a uma distância igual ao perímetro do triângulo formado pelos três homens, multiplicado pelo número total de círculos concêntricos que se encontravam nos três vértices do triângulo, e depois esse número devia ser colocado ao quadrado.
Luigi passou uma corda à volta dos três homens e cortou-a rente para marcar o perímetro do triângulo. Depois ficou à espera. Foi cansativo esperar mais uma hora debaixo do sol escaldante, mas o subterfúgio era necessário.
Quando a hora passou, Luigi virou-se para o pároco e disse-lhe que a cerimónia tinha falhado e que o cabeço não se ia abrir nem iam poder levar o tesouro. O pároco olhou para ele em silêncio.
Nunca tinha acreditado que o cabeço se fosse abrir por ele ler o texto do sermão do breviário, mas tinha aceite fazer parte da cerimónia uma vez que só tinha que ler um texto religioso e ia ser bem pago.
Luigi tinha-lhe pago, em prata, uma quantia suficiente para ele poder reparar o tecto da igreja e poder apoiar os membros mais pobres do seu rebanho, durante uma dezena de anos.
O pároco sabia que ter aceite participar naquela aventura ia fazer disparar na região o número de histórias pagãs de demónios e mouras encantadas, mas tinha sido por uma boa causa.
Sem dizer palavra, virou costas e regressou à aldeia seguido de perto pelos homens das mula, que tinham sido pagos e dispensados, e envolvido pela população ruidosa que discutia aquilo que tinha presenciado.
Muitos não se calavam com a história da bengala de ouro embora estivessem desolados por o cabeço não se ter aberto.
Os sete homens ficaram para trás debaixo da justificação de fotografarem o Outeiro dos Riscos para a enciclopédia.
Enquanto os restantes tiravam fotografias, Luigi calculou o comprimento da corda, e a seguir começou laboriosamente num pergaminho que tinha trazido consigo a fazer contas.
Multiplicou o comprimento da corda pelo número total de círculos concêntricos, que se encontravam nos três vértices do triângulo, e a seguir agarrou no resultado e multiplicou-o por ele próprio de modo a obter o valor ao quadrado.
Luigi nunca tinha tido jeito para o cálculo pelo que teve de repetir as contas três vezes antes de estar confiante de ter obtido o valor certo. Converteu o comprimento em passos e lá foram pela encosta abaixo contando os passos. Chegaram ao local.
Era uma pequena extensão de terra batida num lugar ermo cercado por rochas. Começaram a cavar usando as armas e ferramentas que tinham consigo.
Passada uma hora ouviu-se o som metálico da adaga a bater numa caixa.
Retiraram-na e olharam para o seu interior. Continha uns fragmentos de tecido à volta de um conjunto de ossos. Aí, Luigi viu que o grande tesouro era uma relíquia.
Ainda não sabia do que se tratava, embora tivesse uma suspeita, mas estava confiante que acabaria por descobrir a verdade.
Agora só lhe faltava regressar a casa e colocar a relíquia debaixo da protecção do Vaticano.
Ver também:
◽ A Lenda do Outeiro dos Riscos – contada, de viva voz, pela Ti Albertina de Gatão (Ti d’Eira Velha)
◽ A Lenda do Outeiro do Cabeço do Outeiro dos Riscos