A Póvoa da Requeixada

A Povoa da Requeixada
Manuel de Almeida

VIADAL AO TEMPO DO REI D. DINIS.      

Parte III

Os leitores que, sobretudo em Cambra, têm tido a amabilidade de lerem os nossos trabalhos, talvez, na sua maioria, não identifiquem a povoação da Requeixada (1).

Se assim for, não fiquem espantados. Também nós, só ficamos a saber onde se situava, deve haver, para aí, uns trinta anos. Certo é que, desde meninos, lá íamos, uma ou duas vezes por ano. Ali morava a nossa saudosa madrinha, a quem visitávamos com regularidade.

Mas se eu perguntar, a quem quer que seja, pela Póvoa de Junqueira ou Póvoa do Crasto, se calhar não há dúvidas onde fica. É isso mesmo, do outro lado da Anta, acima de Pontemieiro.

A ela se refere já o Foral Manuelino de Cambra de 1514, bem como as Memórias Paroquiais de Junqueira, nomeadamente a de 1758. Nos Registos Paroquiais também os seus moradores aparecem mencionados como sendo da “Póvoa da Requeixada”.

Baseados na documentação coeva, acima referida, inclinámo-nos que a Póvoa do Crasto é a Requeixada das Inquirições de 1284, povoação não localizada no trabalho de Anita P. Tavares.

2. Lendas do Crasto da Póvoa

Acima da Póvoa da Requeixada localiza-se, a cerca de 800 m de altitude, o Monte Castro ou Crasto, local cheio de lendas tidas como sendo do “tempo dos mouros”. Ora, o dito sítio já era habitado muitos séculos antes, ao tempo dos lusitanos.

Embora visitado, por vários estudiosos, desde, pelo menos, o ano de 1932, parece que ainda não foram lá feitas escavações (2) arqueológicas.

Já as lendas, relacionadas com as suas imensas riquezas lá enterradas, têm feito sonhar, durante séculos, todos os habitantes das redondezas. 

Também a valentia dos seus antigos habitantes é, por demais, conhecida. Eram tão possantes que arremessavam um martelo, sempre que este lhe era pedido, dando um grito, para os seus vizinhos residentes, do outro lado, na Freita, no monte sobranceiro a Cabrum. 

Finda a tarefa, lá o devolviam, da mesma forma, por cima do que é hoje a povoação de Carvalhal do Chão; terra que foi berço do distinto agricultor, cantador e poeta popular, Adão Tavares (3).

3. Albino Filipe Pereira, cidadão da Requeixada

Aqui viveu, durante a maior parte da sua vida, Albino Filipe Pereira, poeta popular e correspondente do Jornal de Cambra, aí pelas décadas de quarenta e cinquenta do século que findou. 

Dado haver alguma confusão com a data exata e local do seu nascimento, estamos em condições de referir que:
– Nasceu a 17 de Abril de 1884, em Chão do Carvalho, freguesia de Arões. Filho de Domingos Filipe Pereira e Maria Tavares, agricultores. Casou a 3 de Novembro de 1909, na igreja de Cepelos, com Carolina Augusta Tavares, deste lugar.

Mais indicamos que também assinava com o nome de Albino Tavares Pereira, o que era normal aquela época (4), conforme se infere da respetiva certidão de casamento. Morreu a 17 de Dezembro de 1970. Foi pai de seis filhos.

Prestou serviço militar em Lisboa, no Regimento de Infantaria 2, Quartel das Janelas Verdes, ano de 1904.Tal como muitos outros, naquele tempo, demandou as terras de Vera Cruz. Por lá tarimbou alguns anos.

Porém, tendo deixado na Requeixada a mulher e já dois descendentes, entendeu por bem voltar ao torrão natal. Era noite quando chegou a Cepelos a casa da sogra.

Esta tentou demovê-lo, a atravessar a Anta, por causa dos lobos. Ele, cheio de saudades, da sua Carolina, disse-lhe: 

– “Eu vou, acendo tojeiros e eles fogem! Não se preocupe”. (in, Ecos do Povo, nº 67, de Fevereiro de 1999).

Era pouco letrado, mas muito sábio, como se infere da leitura das suas quadras. Algumas encontram-se, por nós publicadas, na Voz de Cambra (5), ano de 1995. Aí, ele descreve a sua vida, cheia de labuta, e faz a descrição do viver camponês, em 1951, ano em que nascemos. Abaixo deixamos um pequeno extrato:

De 10 anos fiquei órfão,
Deus levou meu pai e mãe.
O autor, criado vosso,
Qualquer dia vai também.
Nunca esqueci um Pai Nosso,
Pelos que Deus me lá tem.

Os maiores de sessenta anos, das aldeias da serra, ainda se lembrarão dele. Ia a todas as feiras e tinha um pequeno negócio de venda de sementes. Se a sua obra é por demais conhecida; supomos que a sua morada já não será tanto assim. 

Sendo nós, seu admirador e tendo, em 1995, ainda familiares na Requeixada – tio António do Bicho – fomos lá, com o nosso pai, cumprimenta-lo. Como este morava, junto à casa do versejador, ali ao cimo da aldeia, como quem vai para a Anta, aproveitamos para a fotografar.

Ao deambularmos pela povoação, que, como dito, já conhecíamos, fomos metendo conversa com os habitantes. Vendo-nos interessados em conhecer a aldeia, logo nos encaminharam para a casa de uma filha do poeta, cujo nome, lamentavelmente não registamos. Lá chegados, tivemos uma agradável surpresa.

A residência, situada num pátio, à esquerda de quem desce, envolta por uma ramada, tinha inscrita sobre a porta principal, a data de 1805, o que deixava adivinhar ser uma moradia diferente. 

Como íamos acompanhados de nosso pai, seu conhecido, logo nos convidou a entrar. Aceitamos. Fomos para a sala e ficamos maravilhados com o que vimos, nomeadamente o seu magnifico teto.

Era em tabuado de madeira de carvalho que é pouco comum ver-se numa habitação serrana, então longe de tudo. Será porventura da época da sua construção, divagamos.

Indagamos da sua origem, coisa que a proprietária se mostrou desconhecedora. Se fosse aí para finais do século XIX, bem podia ser já a casa de um brasileiro regressado, pensamos. Temos, no entanto, indícios a quem possa ter pertencido antes.

Aquando da leitura das escrituras dos Brandões de Viadal e Gatão (6) fomo-nos apercebendo que já havia, desde o século XVIII, letrados nas diversas aldeias.

Oportunamente daremos a conhecer os seus nomes, logo que haja local para tal. Um deles era exatamente da Póvoa da Requeixada e chamava-se José Soares de Almeida. Analisamos algumas escrituras por ele redigidas entre 1818 e 1834. 

3.1 – Um verso de Albino Filipe Pereira sobre Viadal

A propósito de Covas, em Viadal, referimo-nos, na Parte I, a Diamantino Tavares. Como indicado, este era correspondente do Jornal de Cambra, tal como Albino Filipe Pereira. Acontece que o viadalense ter-se-á pronunciado de forma crítica em relação ao versejador. Este (7), não se faz rogado e responde-lhe:

Há um senhor em Viadal,
Que me esteve a injuriar.
Sabia que eu não sabia,
Podia-me desculpar.
É um burgesso como eu,
Que nem um terço sabe rezar
”.

4. Uma visita à Requeixada, aí por volta de 1956/57

Em garoto íamos, pelo menos, duas vezes por ano, em digressão à Póvoa do Crasto, ou seja, à Requeixada. 

Uma, se o tempo o permitisse, era sempre a 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, com festa em Junqueira de Baixo, terra da madrinha de nosso pai e nossa parente. Saídos, manhã cedo e a pé, de Viadal pelo carreiro das Mós (8) e Anta chegávamos à Póvoa do Crasto, à casa de nossa madrinha.  

Entrados na residência, logo tirávamos a boina galega e, respeitosamente, nos dirigíamos a ela, dizendo:
– “Bote-me a bênção senhora madrinha”.

De seguida ela, sorridente, respondia-nos, pondo-nos a mão em cima da cabeça:
– “Deus te abençoe, meu afilhado, e te crie para boa sorte”. 

Enquanto nosso pai e o tio Marcelino (9) cavaqueavam, lá íamos petiscando uns saborosos e cheirosos rojões, acompanhados com broa e pinga do dono da casa. Depois disso, rumávamos a Junqueira de Baixo.

Passado o pequeno lugar de Pontemieiro, mais uma vez por trilho no meio de leiras, atingíamos a povoação. Lá chegados e feitos os cumprimentos, sem beijos, era a hora do jantar, hoje dito de almoço. 

Ingressados na habitação, que ficava próxima da ermida, já se sentia o cheiro a carne assada no forno de lenha; que gaz só havia de aparecer muitos anos mais tarde.

Dali a pouco, começavam a aparecer outros parentes e lá íamos à vitela assada, com batatas e arroz, tirada duns alguidares grandes. Que cheirinho, que paladar. 

Aí a meio da tarde, após a procissão, lá saíamos, mais uma vez por carreiros, direitos á Anta, mas agora pela Calvela, onde também tínhamos familiares. Feita breve visita, íamos, pela Raposeira, direitos a Vilar, a casa de nossos avós maternos, e por fim a Viadal, já ao cair da noite.

A outra, pela Páscoa, era só à Requeixada. Aqui, devemos confessar, apesar do hábito, havia da nossa parte algum interesse. Nossa madrinha, que era solteira, tinha vários afilhados e afilhadas.

Uns quantos moravam na casa em frente à sua, lá na aldeia. Fazia questão em oferecer sempre, por essa altura, tecido para uma camisa para os rapazes e blusa para as raparigas.

Como era quinhoeira no Moinho do Rão, no rio Caima, em Viadal, dizia-nos sempre:
– “Manel, quando eu morrer, as horas que lá tenho são para ti”. 

Obrigado, madrinha. Tomamos boa nota, mas demos-lhe pouco uso. De resto, como, por certo, donde está tem visto, o moinho há várias décadas que não faz farinha. Primeiro, veio um movido a eletricidade, que se tinha lá por casa, e o do Caima, logo foi esquecido. 

Atualmente, é um padeiro que aparece, todos os dias, a conduzir uma carrinha e a tocar uma buzina. É só deixar o saco pendurado na porta e uns euros noutro, no dia de receber a reforma, que pão do branco – trigo – e broa não faltam.

Foi tão grande a mudança que até as bem cuidadas leiras, cheias de viçoso milho, deixaram de ser cultivadas. Agora é só giestas, eucaliptos e, no verão, os inevitáveis incêndios. Quem poderia imaginar um cenário destes?

Nesse dia, ás vezes, nosso pai ainda dava uma ajuda nas lides agrícolas, pois o tio Marcelino, devido à idade, já não ia para o campo. À tarde, fazíamos as despedidas e, todo contente com a prenda, regressávamos a Viadal, mais uma vez por Vilar e carreiro da Anta a ligar a este lugar. 

Assim, a nosso jeito, aqui deixamos uma singela homenagem (10) a nossa saudosa madrinha, que muito afeto tinha pelos seus afilhados, dos quais, há muito tempo, não temos notícias.

5. O último Lusitano

Como acima o deixamos antever, ter broa (11) para uma casa de família era tarefa árdua, mas imprescindível. Não era só cuidar do milho e armazená-lo. A cada dez dias era necessário ir levar, à azenha, o grão e transformá-lo em farinha. 

Acontece que na Requeixada os moinhos, por lá existentes, não trabalhavam no verão por falta de água. Eram, como referido, os nossos familiares detentores de tempo de moagem no Rão. 

Estando a acabar a broa na Póvoa, o tio António, irmão de nossa madrinha, manhã cedo, enchia um saco de milho, punha-o às costas e dirigia-se, pelo trilho da Anta e Mós, a Viadal.

Chegado a nossa casa, ponto de apoio, lá descansava um pouco. De seguida, descia para o moinho. Por ali ficava o dia inteiro ou vinha cá acima comer.

Ao fim da tarde, agora com a farinha, fazia o trajeto inverso. Trepava até Viadal, fazia as despedidas e, carregado, lá regressava à Requeixada. 

Comparado com esta façanha, só mesmo aquela dos seus muito antigos avoengos, os lusitanos, que arremessavam, lá do Crasto, o martelo para o outro lado no monte, a meio da Freita. Que valentia! Que tenacidade! Que serrano!

Queluz, Junho de 2020. Manuel de Almeida

ANOTAÇÕES
(1) – Sítio não localizado por Anita P. Tavares,  no trabalho que temos vindo a seguir.
(2) – No JC nº 28, II Série de 22 de janeiro de 1932, A.F. Pereira, falando da sua terra, diz que uma Companhia vai explorar o CRASTO.
A ele também se referem, entre outros, os trabalhos de Alberto Souto, António S.P. Silva e Francisco Queiroga.
João do Crasto, autor nascido, parece, em Pontemieiro, conta-nos ainda uma lenda, que já ouvia em miúdo, e relativa à tentativa de moradores locais, incluindo dois padres, do levantamento, por meio de rezas, do grande tesouro lá existente. (in, VC nº 515 de 92.10.01).
(3) – TAVARES, Adão – A Minha Aldeia e Seus Encantos – Ano 2000, pág. 35 e 152.
(4) – Ver, a este propósito, o nosso trabalho: – “O Tabelião da Serra”, in RIBACAIMA.
(5) – Ver a Voz de Cambra, nº 589, de Julho de 1995. Idem, VC de 25 de Maio de 2009 e a “Festa das Janeiras em Gatão”. (VC de 25 de junho de 2010). Artigos da nossa autoria.
(6) –  Ver, A Família Pina Brandão de Viadal e Gatão (in, VC de 2ª abril de 2017 e no RIBACAIMA, blogue da nossa autoria).
(7) – Recolha feita em Viadal, na década de noventa do século que findou.
(8) – Naquele tempo usava-se muito os trilhos, ditos carreiros, para encurtar os trajetos a pé. Este passava, junto ao Cabeço das Mós, onde a lenda também localiza um grande tesouro, em propriedade que foi dos nossos familiares.
Em cima dele adormecemos várias vezes. Temos em preparação um pequeno conto, dando a conhecer as riquezas que deixamos fugir, apesar das simpatias que a bonita moira tinha por nós.
(9) – Embora conhecido pelo tio Marcelino ou Bicho, o seu nome de registo era José Soares, nascido na Requeixada em 1863. Casou em 1901, com Rosa, nossa tia avó paterna. Tiveram três filhos: – Manuel, n. 1902; Maria Augusta, n. 1905 e António, n. em 1909.
(10) – Aproveitamos também para prestar preito a nosso padrinho de quem pouco nos lembramos. Chamava-se Francisco, nascido em 1884 e era nosso tio avô, paterno.
Esteve no Brasil e viveu em Vilar. Faleceu éramos muito pequenos. Já a madrinha de nosso pai chamava-se Rosa (n. 1895, c.1924 e f.1968). Era filha da nossa tia avó paterna de nome Maria (n. 1866), casada com Manuel José Tavares da Calvela, também conhecido pelo ??Falcalheiro.
(11) – Temos em preparação um trabalho com o título:
– A Revolução do Milho, em que pretendemos homenagear toda a gesta do seu cultivo e a mudança operada na alimentação mundial, no pós-descobrimentos.
O milho grosso veio das Américas, zona do golfo do México, pensa-se. Na Europa só o milho painço. A mesma “revolução” foi operada, em África, com a mandioca, dita macaxeira, no Brasil.

A DIVISÃO DO TEMPO DE MOAGEM NO MOINHO DO RÃO EM VIADAL. ANO DE 1835
  • Terça-feira pertence a Joaquim Ferreira; .
  • Quarta-feira a Manuel Francisco; .
  • Quinta-feira pertence a Manuel Fernandes; .
  • Sexta-feira a Manuel Filipe; .
  • Sábado a Manuel Cintro; .
  • Domingo pertence a Caetana Soares: .
  • Segunda-feira nos herdeiros, quatro horas a cada um, a principiar por Caetana Soares. ”.

Mais se dispõe ainda que não havendo água no rio Caima para se tapar “corta-se a água dos lameiros, se os proprietários dos lameiros tirarem a água do moinho e este parar têm a pagar uma multa de quatro cruzados da primeira vez, oito da segunda vez, e da terceira vez doze cruzados“.

Póvoa da Requeixada. Ano de 1995.

Requeixada. Casa que foi de Albino Filipe Pereira. Ano de 1995.

Requeixada. Teto de habitação em madeira de carvalho.

Monte Crasto. Ano de 1995.

Turistas em busca do tesouro do Monte Crasto. Ano de 1995.

Pontemieiro. Ano de 1995.

Moinho do Rão, já desativado. Ano de 1984.

Moinho elétrico, em Viadal. Ano de 2013.

Preparando um assado à moda antiga. Viadal em casa do Alberto. Ano de 1997.