Texto adaptado por Eva Cruz
Ilustração de Ana Martins, Beatriz Bettencourt e Fábio André
Desde tempos remotos os rios condicionaram o povoamento das terras.
O rio Caima, um dos numerosos cursos de água da bacia do Vouga, serpenteando por entre campos verdejantes, fértil de sol e poesia, não escapou à cobiça de conquistadores e povoadores.
Nas alturas, nas voltas e reviravoltas dos rios, ou perto das fontes, construiram esses povos fortificações, que têm o nome de castros.
Também junto ao rio Caima se ergueu um castro ou, “crasto”, em linguagem popular.
O rio foi sempre, neste vale, a mãe que deu pão e vinho, que viu nadar e brincar os meninos no seu leito, que formou ilhas de seixos brancos e amoras negras, e deixou lavadeiras esfregar as roupas na pedra gasta dos seus açudes e corar a roupa branca na erva e nos juncos das suas margens.
O rio foi também fonte de histórias e lendas, que se erguiam das sombras dos carvalhos nos poços mais fundos em noites de luar, ou das fragas da furna, que libertavam o eco profundo do cachoar das águas.
É a lenda da pedra fantasma ou da pedra dos fantasmas que ainda hoje ladeia o caminho estreito coberto de silvas, que leva à ponte de Coronados na Varziela, à espera de quem passa e de quem se lembre de pôr a mão em concha atrás da orelha para ouvir sair o rio das suas entranhas.
É o caso de tantas outras pequenas histórias e lendas que eram contadas à lareira nas noites longas e frias do Inverno e faziam as delícias ou o terror das crianças de muitas gerações passadas.
Entre elas estão histórias de mouras encantadas, a da grade de ouro e a do tesouro no fundo do rio.
Constava entre as pessoas que esses povos milenares, escorraçados pelos donos do vale, haviam lançado, na sua debandada, pedregulhos no rio para o represar e inundar os campos circundantes.
Entre os pedregulhos jazia uma pedra tão pesada e tão funda, que não havia força humana que a levantasse.
Diziam que, como a pedra de um túmulo, escondia um grande tesouro.
Toda a população do vale e todos os que viviam ao longo das margens do rio cobiçavam esse misterioso tesouro e cogitavam na forma de o desenterrar das profundezas das águas.
Constava até, meio em segredo, que outrora houvera gente que conseguira mergulhar e ver uma inscrição gravada na pedra que dizia: Quem me conseguir virar, grande fortuna há de achar.
E estes secretos dizeres incendiavam a cobiça e a curiosidade dos aldeões. Como conseguiram chegar à tradução da frase, não se adivinha.
Alguns nem saberiam ler, tão-pouco sabiam a sua língua, quanto mais a dos outros! Mas a imaginação e a fantasia têm uma linguagem que vai ao encontro do que se anseia.
Assim viveram gerações sobre gerações alimentando as histórias de tesouros escondidos nos montes e nos fundos dos rios, tesouros que tinham pertencido a mouras e princesas encantadas que por ali tinham vivido e reinado.
Um dia um lavrador, que tinha uma possante junta de bois, engendrou, em segredo, com outros dois lavradores mais abastados, uma forma de chegar ao fundo do rio e de erguer a pedra que há séculos ali jazia e tapava o ambicionado tesouro.
Numa madrugada de Verão, quando as águas do rio correm mais baixas e serenas, partiram, sem ninguém dar por ela, com a junta de bois para a beira do rio.
Levaram consigo um pequeno-almoço de garfo, rojões e um bom naco de broa para dar força ao corpo e um garrafão de vinho verde tinto para dar força ao espírito.
Ali chegados, o luar de agosto iluminava as águas fundas do poço e o rio espelhava como bandeja de prata.Todo ele era um tesouro. E o lavrador apontava o dedo para onde lhe parecia enxergar a milenária pedra que chispava, aos seus olhos enfeitiçados, faíscas de ouro.
“Não há dúvida“, todos diziam, “ali só pode estar um grande tesouro, grande tesouro ali há de estar, vamos sair daqui ricos. Não precisaremos de trabalhar mais as terras.”
Até já tinham destinado doar os seus campos e a junta de bois a alguns amigos mais necessitados.
Um dos lavradores, o mais novo, hábil nas artes de nadar por entre os pedregulhos do rio, mergulhou nas águas temperadas da madrugada levando consigo a ponta de uma corda que antes prendera a um ferro grosso espetado nas areias da margem.
Lá bem no fundo do rio, aproveitando um vão entre a pedra e o leito, conseguiu passá-la por baixo da pedra em duas ou três voltas, puxando-a depois para fora de água e amarrando-a com vários nós ao cabresto da junta de bois.
“Anda Vermelho, puxa boi Alvo!” E assim, obedecendo mansamente à voz do dono, como tão bem faz o boi desde que é mouro de trabalho, o “Vermelho” e o “Alvo” ergueram e arrastaram penosamente a pedra para a margem.
Nesta manobra a pedra voltouse, mostrando a face há tantos séculos escondida.
O lavrador mais novo saltou das águas. Gerou-se no rio um redemoinho escuro de água e lama que nada deixava ver.
Os lavradores esperaram entre mil ânsias que o rio acalmasse e as águas ficassem límpidas, deixando que nas suas entranhas os seixos brancos brilhassem com o luar.
Os olhos espantados dos lavradores não queriam acreditar! Não havia ouro nem prata!!! Apenas um buraco negro e fundo como o tempo e o nada!
Olharam para a pedra voltada do avesso e de olhos mais negros e fundos do que o buraco leram, mais para dentro do que para fora, a inscrição gravada na outra face da pedra:
Fizeram bem em me virar, que deste lado já não podia estar.
Reza ainda a lenda que os lavradores, desiludidos, empurraram furiosamente a pedra, restituindo-a ao rio, deixando voltada para cima a primeira inscrição.
Diz também a lenda que, em noites de luar, quando o rio vai baixo, ela ainda lá está para quem a quiser ver e acreditar que esconde um tesouro no fundo do rio.