CANCIONEIRO Colectâneo de Castelões

[Obra não publicada]

CANCIONEIRO Colectâneo de Castelões
Padre José António Martins de Pinho

Introdução

Estamos em 1947. O então estudante, e seminarista, José António Martins de Pinho Júnior, registava para a posteridade o que sabia vir a desaparecer com o passar dos anos: a cultura pura e genuína do sítio onde nasceu, Castelões, de Vale de Cambra.

Recolheu-a da boca dos mais idosos, ouviu-a nas danças e cantares, nas práticas religiosas e pagãs, por todo o lado onde pudesse chegar.

Sabemos hoje como se talhava o trasorelho (cura da papeira atribuída ao efeito de uma lenga-lenga dita ao paciente a quem era colocada uma canga de bois), sabemos hoje como se saudavam as pessoas noutros tempos, como oravam, que brejeirices alegravam o dia a dia, que histórias e poesias se passavam de geração em geração, no trabalho ou na folia.
O resultado de todo este trabalho de recolhas populares, feito ao longo dos anos, está registado em três volumes manuscritos que aqui vamos divulgar.

Duas palavras

CANCIONEIRO Colectâneo de Castelões

Comecei a gostar de poesia. Ouvia cantar no campo, à erva, nas ceifas, nas desfolhadas, nas danças, nas levas do leite à fábrica e não sei porquê, lembrei-me recolher o que andava esbanjado com riscos de se perder.

Observei que o Folclore tendia a desaparecer, ou melhor direi, a render-se por outro mais industrializado, influenciado pelos discos musicais, revistas hodiernas e, em suma, pelo modernismo. Não é sem pesar que lamento nos jovens o esquecimento e o não ensino das orações antigas auscultadas aos velhinhos.

Eu mesmo me dei ao cuidado de compilar algumas, aliás com bastante dificuldade, porque essas venerandas pessoas aterrorizavam-se e diziam não saber falar connosco.

Isto é para constar ao leitor com o que o investigador por vezes enfrenta.

Nesta colectânea, que chamo Cancioneiro, agrupei o modo de salvar, “o salvar é cortesia, a glória Deus a dá”, para mostrar como a gente da freguesia de Castelões de Vale de Cambra, ainda conserva os bons hábitos; ordenei alguns romances pela ordem alfabética, segundo a palavra do primeiro verso de cada; fados e poesia vária – assunto de amor, de descantes, de dança-cantando, das cantadas à noite nas desfolhadas e nas levas do leite à fábrica da empresa Martins & Rebelo.

Julgo que a maior parte das poesias são oriundas do povo dentre os poetas anónimos.

A propósito do romance de Sta Iria, escreveu Garrett (Viagens na Minha Terra, t-II pg 50, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870) que “a extrema simplicidade do romance ou xácara de Sta Iria, o ser ele dentre todos os que andam na memória do nosso povo, o mais geralmente sabido e mais uniformemente repetido em todos os distritos do reino, e com poucas variantes nas palavras, nenhuma no contexto, lhe fazia com que fosse das mais antigas composições não só da nossa língua mas de toda a península; e que visivelmente nascera nos arraiais, nos oragos dos campos e por lá vivera até agora.”

Efectivamente viveu até esta data e é de crer que continuará; o mesmo se dirá dos seguintes que adiante apresento.

Quanto ao romance do cego, Garrett quer ver nele origem escocesa. Seja como for – o seu quê essencialmente popular e o seu assenhoramento – especificam-no de carácter romanesco bem popular.

Haverá poesias que, assimiladas de folhetim de cordel e de poetas celebrados, se popularizaram e hoje, pela posse, é desconhecido o autor; com isso, no entanto, não haverá mal algum, porque o povo, melhor direi, os poetas do povo, ou o povo poeta, saberá cultivá-las, deixando-as na forma e conteúdo primitivos; ou retocando-as, saberão burilá-las com mais fino gosto, conservando-lhes ainda o conteúdo.

Dada com verdade a origem popular, a poesia depois do grande insuflador, o vinho, tem ela a máxima inspiração, mais fértil em quantidade e beleza de versos – no amor.

Amor puro, leal e franco; amor desprendido, abnegado, todo entregue ao objecto amado.

Mas… e aqui apresento o mas, ainda que não simpatize com o seu emprego, nem sempre a poesia canta o seu amor imaculado que costuma e deve levar as virgens ao arco da igreja ornadas de cravos brancos para ofertar à Senhora.

Por vezes, dentro da poesia amorosa, trata-se de declarações amorosas, de aventuras galantes, invejas, alegrias em que o verso transluz maior ou menor grau de receio, temor e até malícia.

Assim acontece que este receio deixa infiltrar-se de certo pessimismo como nesta quadra em que:

Não se conhece no rosto
O que uma alma inspira;
O mundo é gosto, desgosto,
Mentira, tudo mentira.

Algumas quadras exprimem o desejo de bem-estar do namorado, na vida militar, inspirando heróica coragem ao dever, fortaleza para a guerra e que o “casar ainda tem tempo”.

É o espelho do “espírito lusitano, bem vincado no castelonense, de espírito castrense bebido pelos antepassados aqui junto na cidade moura, onde hoje está levantada a Capelinha da Senhora do Monte Crasto” (sita na freguesia de Ossela, confinante e que pertence ao concelho de Oliveira de Azeméis).

Outras quadras, recorrendo à Virgem Nossa Senhora, suplicam-lhe o livramento do namorado da vida de soldado, denotando saudosismo, certo confrangimento por ver o amado ausente e por desventura mais sofredor.

Algumas ocupam-se tão somente da vida simples do amanho das terras, das segas, etc, manifestando a beleza da sua terra como esta que diz que:

Os ares da minha terra,
Por serem ares da serra,
Dão saúde e alegria;
E por isso a sua gente
É sadia, é contente,
Prazenteira, reinadia!

Com as poesias compilei algumas palavras que acompanham os jogos das crianças, verdadeiras cantilenas que são acompanhadas de actos; tal é o réquemintim.

Alguns elementos que adquiri e não pertencem à freguesia de Castelões, a seu tempo os indicarei.

Lamento não pouco, a ausência da música – seria quiçá a parte essencial, a alma desta colectânea para acompanhar as modas das danças, canções, etc., tão simples, modestas e regionais.

Por aqui me fico pois com arquivar e dar a conhecer o que voga nas bocas simples de Castelões de Vale de Cambra.

Dia de N. Senhora da Conceição,
8 de Dezembro de 1947

Padre José António Martins de Pinho