por Augusto Soares da Carvalhalva
Era lindo o Dezembro da minha infância, era muito mais do que um tempo, era mais um estado de graça, era o sentir dum contentamento interior que pertencia mais aos outros do que a nós próprios.
Já de pequenino que eu me apercebia que Dezembro, todo ele, nasceu para ser Natal.
Então por cá, nesta minha Terra de mil montanhas, neste tempo frio em que as geadas nocturnas tudo pintam de prata, Dezembro sempre foi de renascimento, parece que tudo na natureza e entre as pessoas de novo tinha um início.
Lembro-me bem, mal virava o Novembro escuro, que todo ele, inteirinho, nos tinha amochado o espírito, num repente tudo parecia clarear à nossa volta.
E era logo no primeiro dia de Dezembro que começava o milagre, nas Escolas celebrava-se o Dia da Restauração de Portugal em 1640, um acontecimento muito significativo para nós, naquele tempo em que a história de Portugal era ensinada para ser sentida com orgulho pelas crianças.
Logo uma semana depois tínhamos o dia da mãe, o dia que todas as famílias celebravam com carinho as mães, e as mães delas, as nossas avós.
À vinda da Escola trazíamos sempre algo na pasta, uns Versos ou uma Redação a propósito da devoção que por elas tínhamos, ou até um trabalho manual feito com o patrocínio e a ajuda dos professores (nunca mais esqueci o pequenino, mas lindo, tripé articulado de chapa, de cobre polido brilhante, com a frase “Para ti mãe” que fizemos na Escola Industrial de Oliveira de Azeméis, sob a batuta do saudoso Mestre Guilherme).
Do resto do mês, os dessa época sabem, nem seria preciso dizer nada, era tanto o entusiasmo que todos os dias eram como se fosse já véspera de Natal.
A feira dos nove de Dezembro era já o despoletar da emoção, era aí que compravamos as figurinhas de barro para substituir as que se perderam do ano anterior.
Lá em casa o presépio tinha já ganhado forma, uma perfeita réplica das paisagens de montes e vales da nossa linda Terra, São Pedro de Castelões, tudo coberto de musgo orvalhado, contornando os riachos e os caminhos tão engenhosamente desenhados por entre penedias e socalcos, … tudo bem pensado, eram pontes e eram rios com minúcia demarcados com areia ou serradura de pinho.
E, por todo o lado, a cada contorno daquela presepial paisagem espreitavam rebanhos de ovelhas e de cabras, e, sempre perto de cada rebanho, vigilantes, estavam o pastor e o seu cão fiel – lobos nem um só no presépio, que ali eram só coisas do bem.
A cada nova elevação do terreno não faltava um anjinho protetor nas imediações.
Tudo isto sabiamente orientado para o Casebre que representava o centro daquele mundo de magia.
Ali estava Ele – aquecido pelo bafo da vaquinha e do burrinho, entre o São José e a Virgem Maria, e logo atrás, de joelhos, um outro pastorinho – o Menino Jesus, sorridente, nuzinho de todo, parecia espernear de contente.
E cá fora eram os três Reis Magos, acabadinhos de chegar sob a orientação daquela Estrela brilhante divinamente pousada sobre o Casebre.
Sim, tudo ficava alinhavado a partir da feira dos nove, mas era da feira seguinte, a dos vinte e três, que vinham os últimos aperfeiçoamentos do presépio, havia sempre lugar para mais umas figurinhas novas, a maior parte das vezes até obrigando a ir em busca de mais musgo para aumentar o tamanho do presépio.
Mas, mais que qualquer outra data do ano, era o dia seguinte à Feira da Consoada, o dia vinte e quatro, o auge de toda a excitação, e não eram só as crianças, eram até os adultos os mais impacientes.
A lareira era acendida logo de manhã cedo, num canto próximo um montão de achas de Carvalho e de Pinho logo nos fazia lembrar que até ao dia seis de Janeiro, o Dia de Reis, nunca mais aquela fogueira se apagaria, numa tradição que se iniciava com a colocação do Tição do Natal no limite exterior do brasido – um tronco de Carvalho velho ainda com raiz, encostado ao poial daquela lareira gigante que era, então, o centro da casa – tarefa que pertencia aos homens, já que a celebração da Ceia de Natal era, felizmente para todos, coisa da sensibilidade das mulheres.
Logo cedo, iniciavam-se as tarefas, a partir das dez da manhã uma maravilhosa mistura de aromas de canela, de açúcar e de caramelo invadia tudo em redor, eram as rabanadas de leite e de vinho, e os bilharacos e as filhós, e o leite creme e a aletria.
E à hora da Ceia já tudo fervilhava de ansiedade, nós, as crianças, éramos um dilúvio de emoções, de nada valiam os pedidos da mãe e da avó para sossegarmos, era o nosso dia, a família reunida, juntos tios e primos, a expectativa de que tudo o que mais interessava do ano estava prestes a acontecer.
Durante a Ceia, uma ou outra lágrima de emoção via-se escorrer na face da avó – sabia-se lá que lembranças lhe passavam pela mente! Por baixo da mesa algumas mãos reencontravam-se mais demoradamente, alguns arremedos de risos tentavam disfarçar aqueles excessos de ternura.
E, à meia-noite em ponto, ordens da avó, quando lá longe soavam os sinos da Igreja a anunciar o nascimento de Jesus, tudo para a cama que, já se sabia, a partir das seis da matina, ao novo toque do sino para a missa da manhã – missa onde os mais velhos teriam de participar – a casa entraria em alvoroço, todos sabiam dos sons de flautas mágicas que àquela hora ecoariam a despertar simultaneamente toda a gente.
E assim era, os gritos das crianças em correria para as prendas que o Menino Jesus teria deixado junto à lareira abafavam todos os outros ruidos da casa e do universo, à excepção do ladrar estranhadiço dos cães, desconfiados de tão raro madrugar.
Logo depois do café com leite, especialmente reforçado neste dia com nacos de manteiga nele a flutuar, era uma pressa a vestir para a ida à missa das dez.
A caminho da Igreja logo se formavam grupos de rapazes e de raparigas, era tal a excitação que nem tempo havia para um terço das novidades da noite santa, chegava-se à Igreja num ápice, nem dava para se falar com pormenor das prendas do Menino Jesus, … isso ficava para a viagem de retorno a casa, com mais tempo.
E aquela missa de Natal! Tudo era solenidade e côr sem igual, até a cara austera do Senhor Prior João das Neves irradiava agora um sorriso de luz.
E aquele ambiente místico de vivência intensa que os aromas de incenso queimado tornavam mágico!
Ele era também o beija-pés do Menino Jesus, coisa tão linda, … e muito demorada, é que os de dentro, com a Igreja cheiinha de gente, mais os que cá fora aguardavam vez à porta da Igreja e no Adro, faziam muitas centenas.
E quando o Coro masculino entoava o seu reportório de cantos gregorianos!
Ah, até os pingentes dos candeeiros de cristal da Igreja e as mantilhas das mulheres tremiam mal aquelas vozes montanhosas trovejavam graves lá de cima, do Coro Alto, ao lado do Órgão de Tubos que raramente tocava por falta de organista, pois apenas nestes dias mais festivos o Órgão acompanhava o Grupo Coral, só quando cá estava na Terra o Agostinho Martins, de Coelhosa, então seminarista (deve dizer-se que este Grupo Coral era a vaidade maior do Senhor Prior, que o tinha constituído uns seis ou sete anos antes, aí por volta de 1956, … de entre eles o Abel Canastreiro, da Quinta da Ucha, e o seu irmão, o António, tal como o voluntarioso jovem Adolfo Coutinho, de Cabril).
E no regresso da missa começavam então as novidades mais importantes, as raparigas não falavam senão das roupas novas que ali mesmo estavam a estrear, com os rapazes a querer meter conversa, … e eles, de imediato rejeitados daquelas superiores conversas de pretensas mulherzinhas, … amuados, logo davam andamento às botas novas de atanado bem ensebado, tambem acabadinhas de estrear, chutando …, que pena, em mil pedaços as placas de gelo flutuante que a geada da noite santa tinha engrossado nos charcos de água da chuva que, de há semanas, eram luzentes e prateados marcos a alumiar o caminho dos notívagos.
Era assim o Dezembro da minha infância, todos os caminhos da freguesia iam dar a comemorações de Natal, desde Aguincheira às Baralhas, e da Granja à Chã e a Janardo eram encontros de gente feliz, para todos Dezembro não era o período final dum ciclo de tempo, Dezembro era já o inicio dum novo ano, era tempo de redenção e de alegria de viver em comunhão, Dezembro era um presente de Deus embrulhado na mais cândida pureza infantil a que nem os mais rabujentos velhotes conseguiam escapar.