As tranças de Eva

As tranças de Eva

por Eva Cruz

Visto das leiras de cima, passeava-se um chapelinho branco de abas largas no campo do meio. Por baixo do chapelinho, caiam duas grossas tranças terminadas por dois grandes laçarotes.

Eva colhia lírios amarelos e roxos, alguns malmequeres já floridos e umas hastes silvestres. Era maré de Páscoa e o solitário a brilhar de lavado esperava pelo arranjo na mesa da sala.

Alguém trupou ao portão. Uma senhora ainda nova, com modos delicados respondeu. A mãe de Eva reconheceu logo a professora primária e solícita atendeu-a.

Eva era uma criança viva. Na escola resolvia problemas com facilidade, mesmo aqueles complicados com torneiras a encher e a esvaziar um tanque, lia com fluência e expressividade.

– Gostava de convencer a senhora a deixar a sua menina continuar os estudos, eu posso prepará-la para o exame de admissão aos liceus, a minha mãe é empregada da secretaria, arranja-me testes e eu dou-lhe umas horas por fora. Levo-lhe apenas cem escudos por mês.

A mãe conversou com o pai e este achou que não podia ser, pois já andava um a estudar e a carga era grande.

Do escaninho do baú, saltou à mente da mãe os seus pequenos tesouros – um conto de reis em notas, na maioria notas de vinte, um leque a delir-se de velhinho com suportes em osso que pertencera a sua mãe, um relicário vindo de Roma e um raminho da azinheira onde poisou Nossa Senhora. Pensou que poderia usar aquele dinheiro, e sem ninguém saber, chegou Eva à altura de fazer o exame.

O exame da quarta classe, o da admissão e ainda a catequese para a comunhão solene, dada na Igreja a cerca de dois quilómetros de distância, eram tarefa árdua para uma menina de dez anos. Na catequese ia a mãe ajudando com sábia simplicidade.

Julho aproximou-se rapidamente. Os dias eram grandes e as catequistas esforçavam-se por preparar as crianças para serem ouvidas pelo prior, de quem dependia a decisão final. Eva acelerou o estudo do catecismo e, a muito custo, ia mais vezes à igreja.

A catequese era um martírio. A igreja era escura e cheirava a mofo e a silêncio. Os rapazes dali provocavam as crianças que vinham de aldeias mais distantes.

Atacavam-nas com uns tufos pegajosos, à semelhança de pequenos cactos, retirados às pontas de umas hastes. Chamavam-lhes amores. Talvez por isso se agarravam de tal maneira à roupa e ao cabelo que só com muito tempo e dificuldade se despegavam.

Quando o prior fez o interrogatório às crianças para avaliar a sua preparação, saiu da boca de Eva, convictamente, um acto de contrição diferente do que estava no catecismo.

Para quem não sabe, ou não se lembra, o acto de contrição era uma oração que se dizia no fim da confissão. O prior nunca tinha ouvido tal versão. Era um asceta, um misantropo e uma pessoa muito distante e intimidativa. Porém, Eva explicou que o aprendeu da boca da mãe e mostrou, com os seus argumentos de criança, que o essencial estava lá.

Corajosamente acrescentou que muito fazia ela porque só com dez anos tinha de se preparar para o exame da quarta classe, da admissão e fazer a comunhão solene. Perante a desenvoltura e o atrevimento, o prior recuou e disse “ que tenho eu a ver com isso?” Palavras que perduraram na sua mente, pois ela sempre achou que ele tinha mesmo a ver com isso.

Chegou a altura do exame. A mãe fez-lhe um enxoval e disse ao pai que a menina ia passar uns dias com a professora. Comprou tecidos nas do Anjo e elas próprias fizeram um vestido de organsa (organsina) cor de rosa, outro azul de organdi enfeitados com rendas de guipure( guipura) mais uma golinha branca bordada a azul e um casaquinho de veludo de lã. Uma fortuna!

Segundo a mãe, elas aproveitaram-se e enfeitaram de mais os vestidos para a conta ser maior. Mas o dinheiro do escaninho ainda dava para o enxoval.

Numa manhã risonha de sol partiu Eva com a professora. A mãe avisara-a. No exame fala alto, não fales baixinho. Eva seguiu tão à risca o conselho, que a interrogadora lhe disse – fala mais baixo, minha menina!

Quinze dias por lá andou. Com as saudades comia pouco mas deu conta do recado.

Todas as manhãs tinha a professora de lhe fazer as tranças que de tão grossas mal lhe cabiam na mão. Acabou por as cortar a meio para lhe facilitar o trabalho.

Eva regressou num dia de muito calor. Debaixo da ramada comia-se uma sopa, única na sua memória. Sopa de vagens com cebola e tomate, onde cozia um bom naco de presunto e carne de frango que haviam de servir de conduto.

A mãe abraçou a filha com a emoção da saudade, conversou com a professora que lhe explicou o corte das tranças e agradeceram-se mutuamente.

Quando esta se despediu, a mãe chorou de alegria mas também de tristeza. Ai, as tranças da minha meninaTinha tanto orgulho nas suas tranças! E agora como vai ela sem laços na festa da comunhão?

 O pai, que não era para comunhões, não se mostrou preocupado e sossegou-a, achando que o cabelo até lá ainda crescia.

 Vem sem tranças, mas a cabeça está mais rica. A tua filha fez o exame de admissão ao liceu e de aqui para a frente vai estudar como o irmão. Deves orgulhar-te porque, segundo a professora, fez um brilharete.

 Eva sentiu o orgulho numa lágrima do pai.

 No retrato da comunhão lá está Eva com umas tranças curtinhas, terminadas por dois grandes laçarotes pousados no seu vestido branco de cambraia, feito pela ternura das mãos de sua mãe.