Em Vale de Cambra – surpreendente região que a Natureza dotou com as graças mais aliciantes – não há ninguém que o não conheça.
Chama-se Firmino Tavares Castanheira, tem 31 anos, e é natural daqueles privilegiados sítios.
Cego de nascença, corre-lhe a vida tranquilamente sem preocupações ou cuidados de maior. E, dentro do âmbito da sua desventura, considera-se feliz este homem que, nada enxergando à sua volta, por misteriosas influências, consegue andar de bicicleta, dirigir com mão firme a sua casa comercial e percorrer sozinho, não só as ruas e estabelecimentos do burgo, como também as povoações que lhe ficam ao redor dentro da área de 4 quilómetros bem ‘puxados’!
Tem uma livraria e é agente de diversos jornais, em cujo número o nosso figura.
A sua boa disposição é permanente, não havendo dentro de si, pelo menos na aparência, tempestades espirituais.
Sempre com um sorriso, atende todos, e não raro deixa de esmaltar a sua conversa com umas frases especiais onde palpita a boa laracha portuguesa.
Falamos com ele. Pretendenmos sondar o enigma daquela alma – porque deve ser um enigma a alma dum cego de nascença.
Mas a serenidade não se lhe apaga do rosto, da voz, dos gestos. E conta-nos até que “vê” a paisagem à sua roda: vales imensos onde é deslumbradora a sinfonia dos verdes; águas que descem, cristalinas e rumorosas, dos montes até aos campos; casario que sonha, disseminado pelas encostas; e torres de igreja que alvejam esguias e singelas, na direcção do céu.
Ao seu mundo interior, alude por maneira vaga. Pressente a graça da mulher, e – palavras suas – se não contraiu já os laços do matrimónio, é por que não está para aí voltado.
De vez em quando, faz umas digressões ao Porto, a Coimbra, a outras cídades, e contagia-se da vida, do ruído das multidões. As árvores, conhece-as, distingue-as pelo tacto, como conhece e distingue os dedos das suas mãos.
Quando era garoto – elucida – andava aos ninhos com os outros da sua idade. Daí, as velhas relações que com as árvores mantém.
Frequenta os cafés, onde cavaqueia e dá suas leis. Todos o estimam porque, além de tudo mais, o Firmino é cego. E impressiona pela resignação, pela humildade sem revoltas, com que encara a inflexibilidade pungente do seu destino.
Com estranha filosofia confessa:
– A gente precisa de divertir-se, de gozar enquanto é novo. Depois, os velhos são farrapos!..
– O que “vê” no cinema e no Teatro? Ninguém sabe. No entanto, ele é capaz, depois dum espectáculo de comentar, um filme ou descrever o entrecho duma peça teatral.
Gosta que lhe leiam livros. E o seu autor predilecto, nem ele sabe bem porquê, é Camilo. Fala-nos de “A doida do Candal” e doutros volumes do Mestre.
Agora, andam a ler-lhe obras de Ferreira de Castro, que é de Terras de Oussela, nas proximidades da sua terra. E gosta.
Talvez por que tem os livros do seu estabelecimento como companheiros de todos as dias, familiarizou-se com os autores, conhece vários e cita-os, aprecia-os ao seu modo. Pelo que este Firmino Tavares Castanheira, de 31 anos, nado e criado nas ubérrimas paragens de Vale de Cambra – paraíso da Beira Litoral – …
Jornal de Notícias, de 11 de Julho de 1947