por adão cruz
Lá estava o seu rosto velho e sulcado, arranhado do mundo e da vida, meio escondido na barba espessa e negra que o ninho havia impregnado de pequenas arestas de palha.
Já quase não vivia, no magro sentido biológico. Apenas pensava. Por isso algumas vezes o julgaram morto quando ele verdadeiramente vivia. Outros apelidaram-no de filósofo.
Os olhos esquecidos por detrás das pálpebras negras e sujas não paravam nem por escassos instantes no rosto de alguém.
Apenas um relance veloz como o raio constituía a única manifestação vital desse corpo, quando, frente a ele, alguém detinha ou abrandava o passo.
Todas as vezes que o vi me pareceu ver o meu retrato, mas sempre muito distante, muito longe.
Um capote gasto e roto como a pouca vida que o mantinha ainda à flor da terra caía-lhe dos ombros magros como uma cruzeta.
Há anos, muitos anos, que tal veste fora nova e de um castanho torrado como o cair da folha.
Nunca deixara de cobrir aquele corpo, pois a ele o haviam cosido as mãos da miséria.
O próprio cachorro, cuja idade lhe comia no lombo grandes tufos de pelo, não reconheceria o dono sem capote, o dono cindido em dois.
Cão e mendigo, esqueléticos e mudos, parados como um pântano, pousavam para o mundo, para a grande tela da vida.
Constituíam os dois uma só peça, uma única escultura cinzelada numa só pedra.
Não falavam. Apenas de hora a hora gemiam. Se era a goela a queixar-se, mexia-se a mão apergaminhada e ossuda do velho a acariciar-lhe tremulamente o focinho esguio.
Se o gemido nascia do peito humano, brandamente o cachorro se aconchegava a ele, lambendo-lhe os olhos e a boca, como se quisesse mostrar-lhe quanto valia o amor de um cão perante a pobreza do mundo. E o coração do pobre velho sorria sobre um mar de tristeza.
Muita gente vinda da feira passava na estrada de regresso a casa. Todos recordavam esse capote de corte fino e um cachorro felpudo de raça. Mas todos passavam.
Do grande homem de outrora nada existia, além de uma recordação que a palavra louco viera definhando com o decorrer dos anos.
Todos passavam. Alguns, ao vê-lo, contorciam a boca, na impossibilidade de compreenderem o negro decalque do presente sobre a luminosa gravura do passado. Outros nem um olhar gastavam.
Era a humanidade que assim seguia, apática e obtusa, incapaz de perceber que um pobre velho sempre a lastimara e jamais lhe invejara a sorte e os bens.
Eu havia acabado, para esse dia, o meu trabalho. Como sempre, ao dirigir-me a casa, parei frente ao pedinte da berma da estrada.
Sim, parei junto àquele que fora nos meus tempos de criança o grande empreiteiro. Um relance de olhos ao chapéu meio podre pousado na berma poeirenta mostrou-me algumas moedas de cobre, negras e tristes como a miséria daquele velho e daquele cão.
O rosto cavado e dorido notou-me e espremeu uma lágrima. O cachorro gemeu, esticando as patas finas numa languidez de velhice. Que tristeza me tomou!
Ali me detive, na ânsia de ouvir daquela boca seca um sopro que fosse, da voz longínqua que nunca se apagara da minha mente.
Mas essa voz morrera e da loquacidade de outrora nada existia. Negava-se a língua a articular qualquer sílaba, do mesmo modo que as pernas anquilosadas se negavam empreender qualquer movimento.
Senti o coração mergulhar num vazio pesado. Pobre homem!
De repente, os anos palpitantes da meninice afloraram ao meu espírito como estrelas brilhantes e inquietas num céu sedoso e longínquo.
Como eu os senti, como eu rapidamente os revivi nesse encontro com o pedinte da berma da estrada!
Era como se um lírio murcho reabrisse as pétalas ao mais fraco lampejo de sol primaveril.
Os meus olhos perderam-se num mundo de sonho que ficava para além da esquelética face do pobre velho.
Tudo corria dentro de mim num fluir delicioso e colorido de imagem em bola de cristal.
E eu via-o, via-o no centro de tudo, indelével em todos esses quadros mágicos, como se formasse o fundo imóvel da torrente do passado.
Ele era a esse tempo a pessoa mais importante das redondezas.
Já a noite caía sobre as copas negras das árvores quando dei por mim. Um poente que mais parecia uma fogueira pintava a orla marítima do céu, e um vento leve e frio, nascido do anoitecer da serra, fazia tremer.
Fitei o rosto do infeliz no qual buliam alguns pelos da barba e pensei: como dorme!
Era tão grande e resplandecente a paz daquela face amachucada que eu quase senti, ao olhá-la, um sagrado respeito.
O frio de que o cair da noite se envolveu tornou-se tão cortante, que me obrigou a ceder à ideia de levar o velho pedinte a algum abrigo.
Quantas vezes eu pensara arranjar àquele homem o pão e a cama dos derradeiros dias.
Mas havia sempre um resto de orgulho a impedi-lo de abrir a mão ao meu auxílio. E como me doía matar esse bocadinho de orgulho que o aquecia ainda como a frouxa chama de uma vela.
Nesse dia não podia deixá-lo. Toquei-lhe as mãos pálidas e estremeci. Estavam geladas como pedra sepulcral.
Palpei-lhe nervosamente o rosto e a barba que mais me pareceu uma mão cheia de palha seca.
Subi-lhe as pálpebras mas já não havia luz que me permitisse enxergar-lhe os olhos.
Tentei convencer-me de que respirava, mas nem o respirar dos anjos era mais leve.
De repente, ouvi por sobre o coração pancadas tão fortes que me pareceram arrancadas de um tambor.
Em breve percebi que não passavam de silêncio, do mais profundo silêncio.