por Eva Cruz
Abri a cancela, subi os degraus a que há muito me habituei, trupei à porta por decoro, sabendo que não estava fechada, abri-a e deparei com ele, completamente cego, senhor dos seus noventa e quatro anos, mas em pleno uso de todas as capacidades mentais.
Logo reconheceu a minha voz e, gentilmente como sempre, teceu-me os elogios do costume, dizendo que, apesar de não ver nada, viu o sol entrar pela porta dentro.
A lareira remoía um tição em lume brando. Tudo à volta impecavelmente limpo.
Como não a vi, dirigi-me ao quarto, e lá estava ela deitada, com a touca cor-de-rosa na cabeça a cobrir a brancura do cabelo, perdida no sono mais sereno do mundo.
A placa meio tombada nos lábios entreabertos deformava-lhe a cara branca e rosada sem uma única ruga.
Olhei-a de pé durante alguns segundos, curvei-me sobre o seu rosto e chamei-a pelo nome, mas o sono era profundo e ela não reagiu.
Voltei para junto dele, esperando que a mulher entretanto acordasse.
Queria despedir-me, pois ela iria definitivamente para o lar no dia seguinte, ficando ele a aguardar ainda mais uns tempos.
Voltei então ao quarto e já ela estava de olhos arregalados.
De imediato, aquele “Eviiiinha!” fez-me saber que me viu e me reconheceu.
Começou então todo um rosário de lamentos, lavados em lágrimas tão densas que não encontrei palavras de consolo.
Só à noite, em minha casa, a sós com a minha solidão, eu pude sentir a dimensão daquele momento na vida daquela mulher. A Gonzaga não é do meu sangue, mas é como se fosse.
Mais velha do que eu quatro anos, cresceu comigo na aldeia, percorreu os mesmos caminhos, brincou e viveu as mesmas alegrias simples dos tempos de criança e da adolescência.
Com minha mãe, criou os meus vestidos, os do dia-a-dia e os de estrear em festas.
Muitas décadas depois, tomou conta de minha mãe durante a noite e assistiu ao seu fim.
A partir de então, ficou a guardiã da casa, estreitando desta forma os nossos laços de amizade.
Aos fins-de-semana era uma das nossas habituais companhias. Mal eu chegava, ela aparecia.
Lá estávamos as duas, sentadas no banco do jardim, a lembrar o passado, saboreando um gelado nos dias quentes ou um chá à lareira nos dias frios.
Conversas rotineiras, nas quais ela percorria a sua vida e as nossas vidas, saltitando nos tempos como quem saltitava as pedras do rio que ambas tão bem conhecíamos.
Desde a nossa infância e juventude no pequeno mundo das Figueiras, ao Porto, onde nos ajudava, a mim e ao meu irmão quando estudantes, e também à Venezuela, onde posteriormente esteve emigrada.
Tinha uma memória invulgar, lembrava-se de tudo e de todos, recordando em cada segundo os nomes e as pessoas, os tempos e os lugares que o passado votara ao esquecimento, tudo num relato desgarrado, fluente, que me fazia recordar a arte e as analepses da brilhante prosa de Saramago.
Com ela aprendi a reconhecer o cantar das aves, a cor dos ovos dos ninhos e os pássaros a que pertenciam, com ela aprendi muito da sabedoria popular que durante o ano inteiro acompanha a criação da natureza.
Ouvi da sua boca todas as lendas, histórias cómicas, tristes ou bizarras daquela terra, as rezas, as ladainhas, todas as crenças e costumes que fizeram parte das nossas vidas.
Penso que os meus livros não seriam os mesmos, se não fosse a Gonzaga a minha mestra, nas tardes quentes ou friorentas desse campo tão lindo, tão singelo, tão florido e tão maduro de coisas sábias.