A I EXPOSIÇÃO DE ARTEMÉDICA, que decorreu em Junho do ano passado (leia-se 2002) nas instalações da SRNOM, deu a conhecer mais de 60 artistas/médicos, e o catálogo “Olhar a Arte” reuniu duas das principais obras de cada um deles.
A revista NORTEMÉDICO dedica, a partir de agora, algum espaço a tentar perceber melhor como é que vários médicos presentes naquela exposição encontraram a sua vocação pela arte.
Um dos trabalhos mais apreciados foi o de Adão Cruz. Este cardiologista, de 66 anos, que já exerceu medicina à luz da candeia nas aldeias da serra da Gralheira (Vale de Cambra), conta-nos como é que um dia chegou ao Porto, se formou em medicina e, mais tarde, se interessou pela pintura.
«A MINHA PINTURA É UM POUCO RUDE, ÁSPERA, GROTESCA, ATÉ»
ADÃO CRUZ APRESENTA-SE E FALA-NOS SOBRE OS SEUS GOSTOS ARTÍSTICOS, A MEDICINA DO PASSADO E A MEDICINA DO FUTURO
(nortemédico) Quando é que despertou para a pintura?
(Adão Cruz) Sempre gostei muito de pintura. Mas dar-me ao trabalho de me aventurar nessa área, só em 1986. Já tinha 40 e tal anos.
Porquê nessa altura?
Calhou. Por qualquer estímulo, resolvi pegar nos pincéis e pintei uns quadros. Depois, tomei-lhe o gosto.
Foi um complemento da Medicina?
Sim, um hobby. Começou por uma brincadeira, depois foi uma questão de gosto. E nunca mais parei.
Há alguma relação entre a Medicina e a Pintura?
Há. O exercício da Medicina é uma profissão que está intimamente comprometida com a consciência, a ética, a solidariedade e até com a Justiça. E eu penso que o exercício da pintura tem uma grande afinidade com a consciência, ilumina as emoções e o sentimento, ajuda a sentir melhor o processo de humanização e de reflexão. Até ajuda, talvez, a ter um melhor sentido de justiça, através da procura que fazemos do equilíbrio e da harmonia.
Qual a cor que mais usa?
Uma miscelânea. É difícil definir. Uso praticamente todas as cores e depois vou juntando de maneira a adquirir a relação mais íntima entre a cor e aquilo que tenho cá dentro, ou seja, entre a parte interior e aquilo que se concretiza.
Lembra-se do primeiro trabalho?
Foi numa altura em que estávamos muito entusiasmados com o 25 de Abril. Por isso, era um quadro de manifestação, de revolta, de operariado… uma coisa desse género.
O que sentiu quando acabou esse quadro?
Senti que estava jeitoso. Não foi uma sensação de grande confiança. Foi una sensação de que estava jeitoso…
Quantos trabalhos já fez?
Centenas. Tenho imensos vendidos, outros oferecidos e muitos espalhados por aí.
Qual foi o que lhe deu mais gozo pintar?
Lembro-me de uma dezena deles, que dei assim uns saltinhos no fim, quando os acabei…
Qual o valor deles?
Alguns foram vendidos a preços mais ou menos acessíveis. O mais caro que vendi foi na ordem dos três mil euros (600 contos).
Quanto tempo demora a fazer um quadro?
Desde uma tarde a um mês, ou mais… Depende do tipo de pintura. Sou um indivíduo muito irrequieto sob o ponto de vista espiritual. Nunca estou parado. Por isso, a minha pintura é um pouco rude, áspera, grotesca, até. A pintura meticulosa, rendilhada, aquilo a que chamo fazer tricot, não se coaduna comigo. Tem que ser uma pintura rápida, intempestiva. Resolvo as coisas com meia dúzia de pinceladas e depois vou lá dar uns retoques.
EGON SCHIELLE É UM GÉNIO DA PINTURA
Qual o tipo de pintura que mais admira?
Gosto multo do expressionismo. Não gosto do surrealismo, embora considere uma pintura muito difícil, com muito valor. Também não aprecio o realismo propriamente dito. O impressionismo, claro, é uma pintura muito bonita mas já tem a sua história. Mas gosto, sobretudo, daquilo a que chamo o expressionismo ficcionista do sentimento. Uma espécie de expressão do sentimento que eu pretendo transportar para a tela. De uma maneira não grotesca, mas um pouco rude.
Qual o pintor que mais admira?
Por acaso, nem são os mais conhecidos. Para mim, o génio da pintura é Egon Schielle, um rapaz austríaco, que morreu aos 29 anos. Foi repudiado, foi caluniado, mas ficou na história de forma marcante. Mas, claro, também gosto dos clássicos. Mausse e Van Gogh são admiráveis. Mas também tenho grande atracção por pintores contemporâneos.
E portugueses?
Gosto bastante de Júlio Pomar.
Há algum quadro que o fascine?
Sim, o Guernica, de Picasso. Pela expressão, pela força que aquelas figuras têm. Pela força de todos aqueles gestos que, dissecados mentalmente, nos mostram que é uma pintura com muita força.
Em quantas exposições já participou?
Umas dezenas colectivas e talvez uma dezena de individuais.
Louvre e Prado são referências obrigatórias?
Sim, claro, tudo o que é museu, tudo o que é galeria por onde eu passe… vejo tudo. Mas o museu que mais me marcou foi o Hermitage, em S. Petersburgo.
Em que alturas é que pinta?
É irregular, porque sou muito irrequieto. Gosto de cozinhar, gosto de ler, de escrever… E tanto estou a fazer um estrugido como estou a ler uma revista de cardiologia. Mas, para pintar, acontece mais à noite, vésperas de feriado, fins de semana…
Já está tudo inventado na pintura?
Um dos livros que li era sobre a morte da arte. Referia-se à arte moderna. Mas, depois, surgiu a arte contemporânea com uma força extraordinária, embora não se tenha consciencializado, nem se tenha definido. Estou convencido que a arte nunca acaba enquanto houver homens e mulheres.
A MEDICINA ESTÁ CADA VEZ MENOS HUMANIZADA
Lembra-se do dia da formatura?
Claro, são coisas que marcam. Lembro-me da festinha que me fizeram, dos amigos e dos colegas.
Porquê a Cardiologia?
Por nenhuma razão especial. Foi coisa do momento. Inicialmente, a minha preferência até era a Urologia. Mas, naquela altura, não havia as dificuldades de hoje e alguma coisa me levou a mudar de opinião.
Hoje voltava a seguir o mesmo caminho?
Sim, é uma especialidade bonita.
Onde exerce neste momento?
No Porto e em S. João da Madeira. Exerci no Hospital de Santo António durante vinte e tal anos. Estive também no Hospital de Gaia e no S. João. Agora estou no sector privado.
Além da pintura, gosta de mais algum tipo de arte?
Gosto de música, mas não tenho qualquer formação. Essencialmente
gosto de ler e escrever. Aliás, até comecei a escrever muito antes de
pintar. Escrevo desde os tempos de liceu.
Tem livros publicados?
Tenho quatro. Um de poemas, de 1993. Depois tenho outro livro de
contos verídicos, reais, da Guiné-Bissau, da Guerra Colonial, onde estive. E tenho um terceiro de textos híbridos, de poemas em prosa,
digamos assim, com pinturas minhas. E tenho este último, que saiu
em 2003, editado pela “Campo das Letras”, patrocinado pela Bial e
pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia, que se chama “Adão Cruz:
Tempo, Sonho e Razão“, também com pinturas e alguns poemas.
Qual o livro que mais o impressionou?
A obra que mais me marcou foi a de Dostoievski. São livros muito densos, com uma riqueza literária muito grande, com aqueles temas da sociedade russa da época. Mas gostei de outros autores, como Victor Hugo, Tolstoi, Voltaire e Kafka, por exemplo.
Portugueses?
Os Garretts, os Camilos, os Eças, isso já se sabe… Ultimamente, tenho gostado de algumas obras de Saramago. O “Ensaio sobre a Cegueira” considero uma obra fabulosa.
E desporto?
Gosto imenso de ski. Com os meus filhos, comecei a fazer ski há 20 anos. Cheguei a fazer pistas negras e pistas olímpicas, nos Alpes. Acho que já corri aqueles cumes todos.
Futebol?
Não sou grande apreciador.
E o Porto?
Eu sou de Vale de Cambra. Ainda tenho lá a minha mãe viva, com 98 anos. Mas a verdade é que vim para o Porto muito cedo e considero-me portuense. Formei-me em 1965, naquela transição da Medicina antiga para a Medicina moderna. Ainda sou do tempo em que exercia à luz da candeia nas aldeias da Serra da Gralheira. Fazia já pequenas cirurgias, no meio da serra, em sítios onde nem os automóveis chegavam. Tinha que andar a pé. Mas lá ía eu… levava uns antibióticos, uns soros e tentava resolver os problemas. Desde partos a pessoas com tétano. Foram tempos muito difíceis, mas muito enriquecedores.
Como vai ser a Medicina daqui a dez anos?
Vai ser diferente, muito menos humanizada, porque há uma ideia errada da Medicina mesmo junto dos próprios médicos. A Medicina é uma ciência humana por muita tecnologia que exista. O exercício da Medicina é uma relação fortíssima entre médico e paciente. Ora, com o desenvolvimento tecnológico, essa relação tem-se vindo a perder progressivamente. O doente já não é uma pessoa, é apenas um número, é apenas um caso, que vai servir os interesses da tecnologia, sejam eles quais forem. Uns mais perversos, outros menos perversos. Por isso eu penso que a Medicina do futuro vai perder muito porque se está a amputar de uma das suas maiores riquezas. À medida que se vai privatizando, mais se nota isso. Uma medicina privatizada é uma Medicina forçosamente tendente à desumanização.
Texto Rui Martins – Fotografia António Pinto