Camões e os Médicos

Camões e os Médicos

por Manuel Luciano, Médico

Em 1572, “com o Privilégio Real e Licença da Santa Inquisição”, foi publicada em Lisboa a primeira edição de “Os Lusíadas” de Luís Vaz de Camões.

Esta obra é o Poema Nacional, a Bíblia dos Portugueses! Descreve em verso épico, ou heroico, 433 anos da História de Portugal.

“Os Lusíadas” estão divididos em dez cantos, com 1,102 estâncias ou grupos de oito versos (decassílabos) e tem um total de 8,816 versos e mais de 55 mil palavras!

Para satisfazer a minha curiosidade, quis saber como é que o grande Camões trata os médicos no seu imortal poema.

É que eu tenho duas “mulheres espirituais”: uma é a medicina e outra é a história. Ora me viro para uma, ora me viro para a outra. Por isso, sou um homem feliz.

Escorbuto
O tema principal de “Os Lusíadas” é a descoberta do caminho marítimo para a índia por Vasco da Gama e 162 marinheiros, em 1497.

Deste número só 55 regressaram vivos a Lisboa! Cento e sete homens morreram na viagem de mais de 30 mil milhas, a maioria devido ao escorbuto, doença causada pela falta do ácido ascórbico ou vitamina C na dieta.

A alimentação dos navegadores, durante semanas e meses, limitava-se apenas a carne salgada e biscoitos.

Portanto faltava-lhes os alimentos essenciais e ricos em vitamina C: limões, laranjas, tomates, couves, alface, aipo, cebolas, agriões, cenouras, batatas e figos secos.

O escorbuto era o terror dos marinheiros! Com a falta da vitamina C, os capilares (artérias muito fininhas) tornam-se tão frágeis que basta um pequeno toque ou pressão para se partirem e sangrarem.

No escorbuto as gengivas incham, sangram, os dentes caem, as articulações doem (devido às hemorragias), os pés incham e a anemia aguda precede a morte!

É com este quadro moribundo que Camões descreve a viagem de Vasco da Gama, ao passar na costa de Moçambique a caminho de Calecut, na Índia.

Eis, como o imortal poeta lusitano descreve o escorbuto e implora o auxílio médico:

Canto V — Estância 81
E foi, que de doença crua e feia
A mais que eu nunca vi, desempararam
Muitos a vida e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que sem ver o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne, e juntamente apodrecia.

Ou seja, em prosa:
E a nova calamidade, sofrida por nós, foi que muitos dos meus desampararam a vida (mundo, morreram) e para sempre sepultaram os ossos (tiveram sepultura) em terra desconhecida e estrangeira. Quem haverá que o acredite sem o ter visto? pois, que a muitos ali lhes incham tão disformemente as gengivas na boca, que a carne crescia e ao mesmo tempo apodrecia (sofriam o escorbuto).

Canto V – Estância 82
Apodrecia co’um fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho infecionava;
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião subtil menos se achava;
Mas qualquer nesse ofício pouco instructo
Pela carne já podre assim cortava,
Como se fora morta; e bem convinha.
Pois que morto ficava quem a tinha.

Ou seja, em prosa:
A carne apodrecia com um cheiro fétido e repugnante, que infeccionava ao ar vizinho (o ambiente) não tínhamos ali médicos experimentados e também não se achava ali (entre nós) nenhum cirurgião perspicaz: mas qualquer de nós, pouco perito neste ofício (de cirurgião) cortava já nas carnes apodrecidas, com se fossem carnes já mortas; e bem convinha fazê-lo, porque ficava morto quem as tinha (porque morriam os que as tinha assim apodrecidas).

Médico astuto
O médico astuto e perspicaz, para evitar o escorbuto, só apareceu em 1773, — 256 anos depois da viagem de Vasco da Gama.

Foi o Doutor James Lind, médico escocês, que recomendou adicionar sumo de limão à dieta dos marinheiros para evitar o escorbuto.

Em 1795 a Marinha Inglesa adoptou a mesma dieta por isso os marinheiros ingleses passaram a ser cognominados pelos americanos de “limeys” ou limões.

Assim a Marinha Americana, por complexo de superioridades, só passou a usar o limão e a laranja um século mais tarde!!!

Hoje o escorbuto é uma doença rara. Só aparece nas pessoas idosas, com dieta deficiente, ou nos bebés que são alimentados apenas pelo biberão sem se lhes adicionar sumo de laranja ou tomate.

Deus da Medicina
No canto nono, Estância 49, Camões evoca a ajuda da Deusa Vénus (deusa romana) para proteger as ninfas:

Dai lugar, altas e cerúleas ondas,
Que, vedes, Vénus traz a medicina,
Mostrando as brancas velas e redondas
Que vêm por cima da água neptunina;

Ou seja, em prosa:
Dai lugar (afastai-vos) ondas altas e cerúleas (azuladas) do mar, porque, como vedes, Vénus traz a medicina (remédio para as feridas das ninfas mostrando (ostentando) as velas brancas e redondas (da sua embarcação, uma concha) que vem flutuando sobre as ondas neptuninas (do mar).

E, na primeira estância do terceiro canto, Camões refere-se ao inventor da Medicina, ou Deus Apolo (grego), que por sinal é o meu deus favorito:

Agora tu, Calliope, em ensina
O que contou ao rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal que tanto te ama.
Assim o claro inventor da medicina,
De quem Orpheo pariste, ó linda dama,
Nunca por Daphne Clicie ou Leucothoe,
Te negue o amor devido, como soe.

Ou seja, em prosa:
Ensina-me agora tu, Calíope (Musa da Epopeia e da Eloquência) a expor o que o ilustre Gama contou ao rei de Melinde; inspira-me um canto imortal e uma voz divina (um estilo sublime) neste meu mortal coração que te ama tanto (dá-me grandes pensamentos e sentimentos).

E desejo-te, ó linda dama, que, como recompensa do estro que me dispensares, assim (com bondade igual) o preclaro inventor (o ilustre inventor) da medicina, Apolo), de quem pariste Orfeu, nunca te negue o devido, (merecido) amor, como ele costuma fazer (como ele já te fez) por causa de Dafne, Clicie ou Leucotoe (três ninfas amantes de Apolo).

Apolo era para os gregos o deus do sol, da verdade, da música, da poesia, da profecia e da medicina.

Mas o moto mais importante deste deus, tão sublime era, “Pan Metro Areston”.
Pan = tudo;
Metron = medida;
Areston = moderação, que quer dizer nada em excesso ou tudo em moderação.

Esta frase filosófica-médica continua a ser a melhor receita médica, quer no tempo de Camões, quer nos nossos dias.

Deste modo, à minha admiração por Camões não se limita somente ao seu talento poético, mas também a consideração que ele tinha pelos médicos e pela medicina.

A mensagem médica que podemos concluir é que Camões há mais de 400 anos descreveu correctamente os sintomas do escorbuto.

Mas também apreciamos melhor que “tudo que é demais é moléstia” assim como “tudo que é de menos é doença” como é o caso da falta de vitamina C.

A frase em latim correspondente a “Pan Metron Areston” é “ in medio virtus” – “no meio é que está a virtude”.
Mas a virtude é derivada da palavra “virtus” que quer dizer força, poder, força de vontade.
Portanto, nada em excesso é a melhor regra higiénica para a nossa saúde.